Sobrevivente de Realengo sobre ataque em Suzano: 'Senti os tiros de novo'
O ataque a tiros contra alunos de uma escola em Suzano (SP) reverberou com força a 425 quilômetros de distância, em Realengo.
No bairro da zona oeste do Rio, sobreviventes do atentado que matou 12 crianças há quase oito anos assistiram em choque à repetição desse filme trágico.
Alan Mendes, que levou cinco tiros em Realengo em 2011, quando sua turma se preparava para uma prova de português, acompanhou as notícias sentindo uma "dor profunda" e passando mal, tendo picos de pressão: "É como se eu tivesse acordado naquele dia de novo. Senti os tiros de novo", descreve.
Thayane Tavares Monteiro, que ficou paraplégica depois de levar quatro tiros, conhece o desespero vivido pelas crianças. "Eu me senti ali. Era como se fosse eu", afirma.
Em Suzano, na Grande São Paulo, dois jovens armados mataram oito pessoas no ataque à Escola Estadual Professor Raul Brasil, na última quarta-feira, deixando outras 11 feridas.
"Foi um choque ver tudo acontecendo de novo", diz Adriana Silveira, que perdeu sua filha Luiza, de 15 anos, baleada na escola em Realengo - o primeiro ataque no Brasil emulando os episódios de tiros e matanças em escolas americanas.
O "massacre de Realengo", como ficou conhecido, ocorreu no dia 7 de abril de 2011, na Escola Municipal Tasso da Silveira. O atirador, Wellington Menezes de Oliveira, de 23 anos, conhecia bem o local, no qual havia estudado.
Chegou por volta das 8h, com um cinto de munição escondido e dois revólveres e recarregadores. Subiu ao primeiro andar, entrou na sala da turma 1803, onde a professora de português dava as instruções da prova, e afirmou que viera dar uma palestra.
Sacou as armas e começou a atirar, mirando preferencialmente as meninas.
Wellington matou 12 alunos, dez meninas e dois meninos, e feriu outros 11, segundo Adriana. As vítimas tinham entre 13 e 15 anos. Oliveira se matou depois que policiais chegaram e ele foi baleado.
Adriana hoje preside a Associação dos Anjos de Realengo (AAFAR), lutando por mais segurança nas escolas e para que a tragédia não seja esquecida, nem se repita.
"Recebemos a notícia (sobre Suzano) com muita tristeza. Fiquei arrasada. Dizemos sempre que lembrar é reagir e esquecer é permitir, e essa repetição é a prova", lamenta, cobrando uma reação de governantes.
Conheça as histórias de três trajetórias interrompidas pelo massacre de Realengo.
Alan Mendes Ferreira da Silva
Alan, 21 anos, ainda guarda parte do trauma no corpo: uma bala alojada perto do coração. Ele tinha 13 anos quando Wellington entrou sem pedir licença na sala de aula do 9º ano, sacou dois revólveres e deu um tiro na cabeça de Samira, que estava sentada ao seu lado na primeira fila. Aos 13 anos, Alan perguntou: "O que é isso??", e levou um tiro no ombro.
Wellington então matou Géssica, que cochilava debruçada sobre a carteira. Alan tentou jogar sua mesa sobre ele e escorregou no sangue de Samira.
"Ele me falou, 'agora que você vai morrer', e deu um tiro no meu rosto. Eu consegui sair correndo, mas ele continuou atirando", lembra Alan. O tiro entrou debaixo do olho esquerdo e saiu pouco abaixo da orelha direita. Outro se alojou perto do coração, outro atravessou sua mão, outro pegou de raspão na barriga.
Alan saiu da escola e foi correndo até perto de casa, a 1,5 km de distância, e só viu que estava "todo furado" quando encontrou uma viatura e denunciou o ataque a um sargento, que o mandou entrar no carro.
"Eu falei que estava bem e ele perguntou: 'como, se está cheio de tiros?' Aí que me vi na viatura, meu rosto furado, minha mão sangrando muito."
Os tiros acabaram com o sonho de Alan de entrar para o Exército. Ele não pode fazer muito esforço físico e sente o desconforto da bala quando o tempo muda.
A dor era muito pior nos primeiros anos. Sua mãe teve que parar de trabalhar para cuidar do filho. A família teve acesso ao atendimento psicológico oferecido pela prefeitura durante um ano e recebeu R$ 700 mensais até que saísse a indenização.
Alan está organizando as economias para estudar Direito em uma faculdade particular.
Ele concluiu o ensino fundamental na Escola Tasso da Silveira depois que se recuperou. "Doeu muito voltar. Às vezes, eu tinha crise de choro na sala de aula. Sentia medo de estudar", lembra.
Aproximou-se muito de Thayane, que ficou paraplégica. "Nós vimos muitas mortes. Nós dois juntos nos ajudamos a nos levantar."
Ele acredita que o ataque em Suzano poderia ter sido prevenido se os apelos da Associação dos Anjos de Realengo por mais segurança nas escolas tivessem sido ouvidos.
"Como é possível que jovens com armas, máscaras, arco e flecha entrem em uma escola?", questiona. "São coisas que poderiam ser evitadas se as escolas não estivessem ao deus-dará. Você não vê atiradores entrando no Palácio do Planalto ou no Congresso. Mas vê nas escolas, matando o futuro do Brasil."
Thayane Tavares Monteiro
Thayane soube que tinha perdido o movimento das pernas assim que levou os tiros. "Primeiro ele mirou na minha cabeça, mas tomei o tiro no braço com que me defendi. Depois foram mais dois tiros à queima-roupa que se alojaram na minha coluna, e outro na cintura. Ele continuou os disparos e eu fiquei me fingindo de morta", lembra.
Depois que o ataque acabou, ela tentou se levantar, mas não conseguiu. Estava paraplégica e acabara de perder a melhor amiga, Ana Carolina Pacheco da Silva, de 13 anos, com quem tirara uma foto sorridente na manhã anterior, na escola.
O dia 7 de abril se tornou um segundo aniversário. "Apesar de ser um dia muito triste, eu sempre comemoro mais um ano de vida", diz. Não consegue imaginar como seria sua vida se aquilo nunca tivesse acontecido.
"Creio que seria uma vida normal. Na cadeira de rodas, é completamente diferente. Tive que aprender tudo de novo, como se fosse um bebê, como aprender a engatinhar", diz.
"Tive que aprender a conviver com a falta de acessibilidade, com os olhares das pessoas, com o preconceito, tudo isso. Foi muito difícil no começo, mas acho que agora estou bem."
No ano seguinte ao ataque, ela voltou para a Tasso da Silveira e completou o ensino fundamental. Hoje, está no terceiro período da faculdade de Direito na Universidade Castelo Branco.
"Eu procurei não me vitimizar por estar na cadeira de rodas. Busquei coisas que se adaptassem à minha forma de vida", diz. Ela pratica a paracanoagem, estuda "para manter a cabeça ocupada e estar" e se cerca de familiares e amigos "para não deixar o medo vencer".
Teve que parar de fazer fisioterapia em 2016 e se queixa da falta de apoio da prefeitura. "Não estou sendo assistida com a devida atenção. Infelizmente, tudo é com muita briga."
Thayane diz estar à disposição dos sobreviventes de Suzano. "Se alguém quiser conversar comigo, quiser a minha ajuda, é só eles me procurarem nas redes sociais", afirma.
"Além do trauma, das lembranças e da dor pela saudade dos amigos que se foram, eles vão ficar com medo de voltar para o colégio, vão ter muitos pesadelos. Não dá para esquecer nunca. Mas com o tempo eles vão acabar aprendendo a conviver com isso".
Adriana Silveira
Até 7 de abril de 2011, Adriana trabalhava como vendedora de roupas autônoma e era mãe de um casal de adolescentes. Sua única menina, Luiza Paula da Silveira Machado, a caçula, morreu aos 15 anos, dentro da escola. Desde então, ela diz que "faz do luto uma luta" para conseguir sobreviver.
"Foi uma barbárie. Era um fato único na história do nosso país, e deveria ter sido o último. Ali, nossos governantes deveriam ter tomado providências. Mas o Brasil é um país que não trabalha com prevenção. Infelizmente, o problema continuou, então a luta tem que continuar."
Com as outras famílias de vítimas, Adriana fundou a Associação dos Anjos de Realengo (AAFAR), da qual é presidente. A associação conseguiu a aprovação, em 2013, da lei estadual 6.401, que prevê ações de combate ao bullying e ao cyber-bullying nas escolas, na primeira semana de abril.
Ela costuma viajar para dar palestras em escolas sobre a importância da conscientização contra o bullying.
A investigação policial do caso de Realengo apontou o bullying que Wellington teria sofrido ao longo de sua vida escolar como uma das razões para o ataque.
Adriana escreveu um livro infantil que faz homenagem à filha, Meu anjo Luiza, buscando tematizar a violência no ambiente escolar para um público infantil. Ela fala sobre valores humanos e a importância do respeito e do amor ao próximo.
"Temos que trabalhar com as crianças enquanto são pequenas para que sejam adolescentes e adultos melhores. Se não fizermos um trabalho de prevenção, infelizmente amanhã poderemos ver adolescentes delinquentes repetindo o que vimos."
"Não podemos descartar a hipótese de que o agressor também precise de tratamento. Se uma criança dá sinais de problemas, isso precisa ser trabalhado em conjunto pela família, pela escola, precisa envolver governantes e a sociedade", diz.
Depois do ataque, a segurança foi incrementada na Tasso da Silveira, que hoje conta com a presença de guardas durante 24 horas.
"Mas não queremos isso só na Tasso. Isso é tapar o sol com a peneira. Precisamos esperar que morram crianças em outras escolas para que aumentem a segurança?", questiona.
"Se as nossas crianças partiram, elas deixam um pedido de paz e de mudanças na educação. Em nome delas, espero que outras crianças possam desfrutar de uma educação em que tenham o direito de entrar e sair com vida das escolas, direito que elas não tiveram", diz Adriana.
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