"Em Paris escrevi meus primeiros livros", dizia Mario Vargas Llosa, que faleceu aos 89 anos
O escritor peruano faleceu no domingo, 13 de abril, em Lima, capital peruana, aos 89 anos. Mario Vargas Llosa era o último sobrevivente de uma geração de grandes autores que romperam as fronteiras literárias da América Latina, como Gabriel García Márquez, Julio Cortázar e Carlos Fuentes. O prêmio Nobel tinha uma forte relação com a França e fazia parte da Academia Francesa de Letras sem nunca ter escrito em francês.
Isabelle Le Gonidec, da RFI
Além da vasta obra literária, Mario Vargas Llosa também ficou conhecido por suas ideias e participação política, com uma candidatura à presidência do Peru e inúmeras declarações, análises e posicionamentos, muitas vezes bastante conservadores. Vencedor do Prêmio Nobel em 2010 e primeiro membro da Academia Francesa que não tinha o francês como língua nativa, Mario Vargas Llosa se tornou parecido, através de seu trabalho e seus engajamentos políticos, aos personagens que retratava em seus romances.
Vargas Llosa tinha se afastado da vida pública e se instalado há meses em Lima, de acordo uma mensagem de sua família no X, anunciando sua morte. Nos últimos meses, rumores sobre a deterioração da saúde do escritor se multiplicaram. Ele está "prestes a completar 90 anos, idade em que precisa reduzir um pouco a intensidade de suas atividades", disse seu filho Álvaro em outubro passado.
Prolífico, o prêmio Nobel escrevia constantemente, lançando a cada ano, um novo livro e diversas publicações, entre análises políticas, coletâneas de artigos e crônicas. Sua última obra, "Dedico a você meu silêncio", foi publicada em 2023 (2024 no Brasil). Até dezembro do mesmo ano ele escreveu um editorial quinzenal para um jornal espanhol.
A vida literária não o impedia de participar da vida política de seu país, o Peru. "Vida, literatura e política formam um grande todo em MVL. Três fios da mesma trança, tão entrelaçados que um nunca se separa dos outros", definiu a escritora e crítica literária do Le Monde, Florence Noiville.
Um "homem-caneta"
No primeiro volume de suas memórias, "Peixe na Água", Vargas Llosa conta que desde muito jovem queria reescrever as histórias cujo final queria "corrigir". "Na vida e na escrita, na ação e na fala, Mario Vargas Llosa sentiu-se muito cedo como um peixe na água", escreveu Albert Bensoussan, seu tradutor para o francês por mais de cinquenta anos, em um ensaio que lhe dedicou. "Um homem-caneta", escreveu Mario Vargas Llosa, após receber seu Prêmio Nobel em 2010, afirmando que "ainda tinha muitos projetos".
A história do escritor sempre foi próxima da França. Desde seu primeiro conto, "El desafio", publicado aos 20 anos, Vargas Llosa recebeu um prêmio da La Revue Française de literatura, que o convidou a Paris, para onde viajou em 1959.
Um escritor que "se trancava de manhã cedo até a noite para escrever, e seu almoço (um sanduíche ou uma refeição leve) tinha que ser deixado em uma bandeja em frente à porta. Mario a abria, almoçava sozinho e continuava escrevendo, escrevendo", diz outro grande escritor, o cubano Guillermo Cabrera Infante.
Na época, Vargas Llosa estava escrevendo "Tia Júlia e o Escrevinhador", uma de suas obras de auto ficção mais famosas, relatando seu caso de amor com sua tia, que foi sua primeira esposa e sua educação sentimental. "A literatura é tanto uma vocação quanto uma disciplina, um trabalho e uma determinação", escreveu Vargas Llosa.
Tudo começou no Peru
Nascido em 1936 na cidade peruana de Arequipa, Mario Vargas Llosa cresceu entre a Bolívia e o Peru, criado por sua mãe e avós maternos. Ele não conheceu seu pai até os dez anos, pois seus pais se separaram após seu nascimento.
Ele relata seu reencontro conflituoso com o pai no primeiro capítulo de sua autobiografia: "Este senhor que foi meu pai", um título que diz tudo. A criança, que era o centro do núcleo familiar, teve que se submeter à rígida disciplina imposta pelo progenitor.
Ele estudou Literatura e Direito na Universidade de San Marcos, em Lima, atuou no Partido Comunista por um ano e escreveu colunas para vários jornais, elementos biográficos que nutrem vários de seus primeiros romances. Em 1958, ele deixou o Peru e foi para a Espanha com uma bolsa para uma tese de doutorado, depois para Paris.
Vargas Llosa diz que realmente se tornou um escritor na capital francesa.
"Foi em Paris que escrevi meus primeiros romances, descobri a América Latina e comecei a me sentir latino-americano. Vi meus primeiros livros serem publicados. A França me ensinou que o universalismo, característica distintiva da cultura francesa desde a Idade Média, longe de ser exclusivo do enraizamento de um escritor nas questões sociais e históricas de seu próprio mundo, em sua língua e em sua tradição, ao contrário era por ela fortalecido, e carregado de realidade", descreve no prefácio de suas obras publicadas na prestigiosa coleção La Pléiade, da editora francesa Gallimard.
Vargas Llosa foi um dos raros escritores a ter entrado em vida na coleção e o primeiro e único autor estrangeiro a fazer parte.
"Vocês não imaginam como fiquei feliz com a publicação dos meus livros na Pléiade. Sempre fui muito próximo da literatura francesa e considerava a Pléiade como o ápice. Então, fazer parte dela, estar neste topo, foi muito encorajador", disse em entrevista à RFI, em 2016.
Em 2023, o autor entrou para a Academia Francesa de Letras, apesar de nunca ter escrito em francês.
O mestre Flaubert
Vargas Llosa experimentou todos os gêneros literários e escreveu ficção, ensaios, peças de teatro, artigos, editoriais e até roteiros para o cinema. Um contador de histórias formidável com uma "voz generosa", diz Bensoussan. Uma linguagem acessível, cheia de eloquência e cor, com personagens de carne e osso, plenamente vivos, evoluindo em contextos históricos muito bem documentados.
Assim como seu mestre Flaubert, o inventor do "narrador invisível", a quem dedicou "infinita gratidão" e prestou uma comovente homenagem em seu discurso no Nobel, ele tomava notas, ia aos locais da trama, conferia tudo.
Apesar das influências de Flaubert, Victor Hugo (ele leu Os Miseráveis ??aos 14 anos no internato militar onde seu pai o internou), do americano William Faulkner ou do britânico-polonês Joseph Conrad, seu berço era o espanhol.
Mas isso não o impedia de viajar. Ele tinha vários passaportes, morou em Lima, Londres, Paris (sete anos), Madri, Estados Unidos, trabalhou no Japão, na República Dominicana e no Brasil. Em todos os lugares, "encontrei um lar onde posso viver em paz e trabalhar, aprender coisas, alimentar ilusões, encontrar amigos, fazer boas leituras e encontrar assuntos para escrever", disse.
Mas o Peru continuava presente e, em seu discurso no Nobel, Vargas Llosa homenageou o país que carregava "em suas entranhas" como uma "doença incurável".
Em todas as frentes
Vargas Llosa foi ativo em todas as frentes, literária e política. Sua paixão por questões públicas o levou a se envolver na política a ponto de concorrer à presidência do Peru, em 1990. Apoiado por uma coalizão de centro-direita, que defendia a liberdade econômica e exaltava as virtudes do mercado, ele foi derrotado por Alberto Fujimori.
Em suas memórias, ele falou de sua viagem relâmpago aos países asiáticos ? Japão, Taiwan, Coreia do Sul e Cingapura ? e afirmou que são modelos de integração ao mercado global e exemplos para seu país seguir.
Comprometido, como muitos de seus companheiros escritores latino-americanos, inicialmente com a esquerda (ele também foi o primeiro autor latino-americano da geração "boom" a ser traduzido para o russo), ele apoiou a revolução cubana e os processos de descolonização em andamento na década de 1960.
Vargas Llosa data sua mudança política, que ele justifica pela rejeição do "populismo", seja de direita ou de esquerda, a partir de uma viagem à antiga URSS em 1968, do contundente julgamento de Heberto Padilla em Cuba em 1971 e da leitura de Karl Popper. A partir deste momento ele rompeu com Gabriel García Márquez. O peruano se dizia "liberal" e afirmava que "a democracia é produto do liberalismo" e que o liberalismo sinalizou o fim das utopias do século XX.
"A ficção salvará a democracia"
Vargas Llosa criou a Fundação Internacional para a Liberdade (FIL), atualmente presidida por seu filho Álvaro, um think tank ultraliberal, e assumiu diversas posições, muitas vezes bastante conservadoras no plano político: apoio a Margaret Thatcher, à candidatura de José Antonio Kast nas últimas eleições presidenciais no Chile, apelo ao voto ? com outros conservadores ? em Javier Milei na Argentina.
Mas, em fevereiro de 2021, mostrou-se indignado com a expulsão, pelo governo chileno, por avião militar, a mando do presidente Sebastián Piñera, de migrantes venezuelanos. "O Chile tem memória curta", escreveu em uma coluna, "que esquece que a Venezuela já acolheu muitos chilenos que fugiam da ditadura de Pinochet!" Na mesma coluna, saudou a decisão do governo colombiano de regularizar mais de um milhão de migrantes venezuelanos.
Da mesma forma, ele apoiou Biden contra Trump, a quem acusa de fazer da política um espetáculo. Embora seu nome tenha aparecido nas investigações sobre os Panama Papers e Pandora Papers, Vargas Llosa fez do combate à corrupção que impera entre as elites políticas da América Latina e da falta generalizada de cultura política suas principais preocupações.
Suas posições muitas vezes irritaram seus leitores. "Ele é, acima de tudo, um homem livre que deseja preservar sua liberdade de julgamento", escreve seu tradutor Albert Bensoussan. Em uma coluna no jornal El País, Vargas Llosa escreveu em 2022: "Posso estar errado, e neste caso meus erros correspondem a uma ideia que, me parece, é profundamente democrática: os povos têm o direito de se enganar. Em democracia, os erros podem ser corrigidos." Segundo ele, a ficção salvará a democracia, ou se destruirá com ela e desaparecerá.