Barrado, mototáxi gera disputa judicial sobre responsabilidade em acidentes
O transporte de passageiros por mototáxi está suspenso na cidade de São Paulo e, nos últimos meses, tem sido objeto de disputas judiciais entre a prefeitura da capital paulista, que alega falta de segurança para condutores e usuários, e as empresas Uber e 99 - que chegaram a disponibilizar o serviço, antes da respectiva proibição.
O elevado índice de acidentes envolvendo veículos de duas rodas e a falta de regulamentação são os balizadores desse debate envolvendo uma modalidade de transporte disponível há décadas em municípios menores e que está chegando a algumas metrópoles.
Diante de acidentes recentes envolvendo mototáxis, uma das perguntas que surge é, justamente, como fica a situação das vítimas e qual seria a responsabilidade das empresas de transporte por aplicativo em caso de sinistro.
Ainda não há lei específica sobre o assunto, mas recentes decisões da Justiça têm sido no sentido de dividir a responsabilidade entre as empresas e o condutor que presta o serviço - inclusive em caso morte da vítima.
Passageira ficou ferida em SP
É isso que aconteceu, por exemplo, em Arujá, na Grande São Paulo - onde, ao contrário da capital, o serviço é permitido.
No caso em questão, ocorrido em setembro de 2023, um mototaxista que trabalhava pela 99 fez um cruzamento proibido e foi atingido por enquanto transportava Joicy Adriana Silva da Rocha.
A mulher de 21 anos sofreu fraturas graves e, após cirurgia, ficou internada durante uma semana com as pernas engessadas.
Joicy acionou a 99 na Justiça, que, mesmo após recurso, manteve a condenação de pagamento por danos morais à passageira no valor de R$ 5.000.
Esse montante corresponde apenas à indenização pela "dor física e psicológica".
A vítima pediu mais R$ 3.500, supostamente gastos com fraldas, novos óculos de grau e curativos, mas o juiz Guilherme Lopes Alves Pereira indeferiu a solicitação, alegando falta da apresentação de comprovantes dessas compras.
Após apelação da 99, o desembargador Fernão Borba Franco manteve a condenação e a responsabilização da empresa, mencionando, na sua decisão, a "responsabilidade solidária com os motoristas 'parceiros' perante os usuários do aplicativo por eventuais falhas na prestação do serviço".
Lucros x riscos
Na visão dos magistrados, por mais que as gestoras dos aplicativos aleguem que são apenas intermediárias da prestação do serviço de transporte, elas lucram com esse método e, por consequência, também devem encarar o risco do negócio, incluindo a reparação por acidentes do tipo.
Segundo o jurista Sergio Cavalieri Filho, a responsabilidade dos aplicativos também envolve eventuais vítimas que não utilizam o serviço.
"Não faz qualquer sentido exigir que o fornecedor disponibilize, no mercado de consumo, produtos ou serviços seguros apenas para o consumidor, não se importando com terceiros que possam vir a sofrer danos", pontua Cavalieri Filho, ex-presidente do TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro).
Esse entendimento já era adotado no transporte de passageiros em carros, por meio de aplicativos.
Exemplo disso é o acidente ocorrido em 2018 no Distrito Federal, quando um homem que dirigia seu Volkswagen Polo foi atingido por um Renault Logan cujo condutor trabalhava como parceiro da Uber.
Os dois desembargadores que analisaram a questão concordaram que a empresa dividia a responsabilidade do acidente, e que o motorista do Polo deveria ser equiparado a um passageiro a fins de indenização, conforme o CDC (Código de Defesa do Consumidor).
No fim, a Uber precisou dividir com o motorista do Logan a indenização que, entre danos morais, materiais e estéticos, totalizou R$ 22.647,58.
Em seu voto, a desembargadora Ana Maria Ferreira da Silva citou até o exemplo de um avião comercial que caísse sobre uma casa ao sofrer um acidente: no entendimento da magistrada do STJ (Superior Tribunal de Justiça), caberia o mesmo cálculo de indenização aos passageiros e também aos moradores do imóvel atingido.
Congresso analisa projeto de lei
Outro desembargador, Luís Gustavo B. de Oliveira, concordou com o julgamento de Silva, mas destacou que, até agora, as decisões vêm sendo tomadas a partir de analogias, sem leis que definam de forma explícita o papel dos aplicativos nesses casos.
Por serem novas no mercado, tais empresas "não possuem regulamentação própria, gerando assim dúvidas se sobre a mesma recai qualquer responsabilidade pela reparação de danos causados por motoristas vinculados a sua plataforma digital", afirmou Oliveira.
Para suprir essa lacuna, o Congresso Nacional analisa projeto de lei proposto pelo senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS) para regulamentar o tema.
A proposta é de alterar a chamada "Lei do Uber", inserindo parágrafo que deixe claro que "as empresas de transporte remunerado privado individual de passageiros terão responsabilidade solidária pelos danos causados por pessoas físicas e jurídicas durante a execução do serviço de transporte".
O senador Paulo Paim (PT-RS), relator do projeto, concorda com Mourão e sugere apenas algumas mudanças técnicas no texto, sem alterar seu conteúdo.
Posteriormente, o senador Fernando Farias (MDB-AL) foi além e propôs que a redação fosse ainda mais clara, estendendo a responsabilidade ao "transporte remunerado privado de mercadorias delivery".
Prefeitura de SP x aplicativos
Enquanto a mudança da lei tramita no Congresso, vem ganhando as manchetes o duelo entre a Prefeitura de São Paulo e as empresas de aplicativo, que foram proibidas pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB) de operar o mototáxi na cidade.
A Uber, por exemplo, vem defendendo que a "Lei do Uber" permite às prefeituras somente regular o serviço, sem o direito de proibi-lo, pois essa atribuição seria exclusiva da União. Com esse argumento, o mototáxi chegou a ser oferecido pela Uber e pela 99 aos paulistanos no início deste ano, antes de ser proibido, dias depois, através de liminar.
O argumento da Prefeitura se baseia no risco do negócio: segundo dados do Detran-SP (Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo), a mortalidade do trânsito paulistano chegou ao pior número em nove anos e a disseminação dos serviços de entrega seria a principal responsável, de forma que o mototáxi só pioraria a situação.
Na ocasião, a 99 disse em nota que seguiria recorrendo da decisão. A Uber chegou a veicular campanha publicitária para pressionar a prefeitura, ao mesmo tempo que classifica a liminar como "inconstitucional".
Plataformas respondem
À reportagem, a Uber se pronunciou, inicialmente, através da Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que representa empresas de mobilidade como 99, Amazon e iFood e a própria Uber, entre outras.
Segundo a Amobitec, os aplicativos estão dispostos a colaboração com o debate em relação às novas regras do setor, reconhecendo os "desafios regulatórios das plataformas tecnológicas no Brasil".
Os aplicativos reafirmam seu compromisso com a segurança e permanecem "à disposição para colaborar com o debate institucional e jurídico sobre novas formas de mobilidade e os desafios regulatórios das plataformas tecnológicas no Brasil."
Sem comentar incidentes específicos, a Amobitec disse que suas empresas estimulam práticas de condução segura entre seus parceiros e que a atenção à segurança vai além do mínimo legal. A entidade também afirmou que as plataformas agem de forma proativa para facilitar a contratação de seguros contra acidentes pessoais durante as viagens para os motoristas parceiros e usuários, que são obrigatórios.
Posteriormente, a Uber solicitou a UOL Carros a inclusão de uma nova declaração:
"A segurança de todos que utilizam a plataforma é uma prioridade para a Uber. Como parte desse compromisso, o aplicativo oferece, por meio de uma parceria com a Chubb Seguros Brasil S.A., um Seguro de Acidentes Pessoais para motoristas parceiros, usuários e seus convidados durante as viagens intermediadas pela plataforma. A cobertura inclui despesas médicas hospitalares em caso de acidente, ou, em situações mais graves, cobertura de invalidez permanente, entre outras (mais informações no site da Uber).
É importante destacar que a empresa atua como provedora da plataforma tecnológica Uber, com o objetivo de promover o uso mais racional da mobilidade urbana - seja no transporte de pessoas ou na entrega de itens - por meio da conexão entre usuários e parceiros independentes e autônomos, que podem aceitar ou não a solicitação. O serviço oferecido pela Uber é, portanto, o de intermediação tecnológica. Essa natureza jurídica já foi reconhecida por diversos Tribunais no Brasil e, inclusive, por decisões do TST, do STJ e do STF, que confirmam que os motoristas e entregadores são usuários da plataforma e contratantes da Uber, e não seus empregados.
A Uber acompanha atentamente a evolução da jurisprudência brasileira sobre responsabilidade civil em casos de acidentes envolvendo o transporte de passageiros pela plataforma, especialmente considerando que o ordenamento jurídico do país estabelece como regra a responsabilidade subjetiva - que exige a comprovação de culpa, dano e nexo causal. Vale ressaltar, ainda, que a maioria dos julgados reconhece a ausência de responsabilidade da empresa, considerando que a sua atuação se limita à intermediação tecnológica entre usuários e parceiros autônomos".