Atrás de grades: moradores vivem com medo em prédio precário em São Paulo
No centro histórico de São Paulo, há um prédio em que moradores vivem em clima de presídio e sentem medo tanto de sofrerem violência nos corredores, quanto de verem a estrutura ruir em dias de temporal e ventania. Apelidado de Sarajevo, em referência à cidade destruída durante a Guerra da Bósnia (1992-1995), o edifício Júlia Cristianini tem a precariedade de sua estrutura monitorada pelo Ministério Público.
Nos corredores, as portas são gradeadas. Para circular pelo prédio, há quem use armas brancas para se proteger. "Peraí que vou pegar um canivete", disse uma moradora à reportagem enquanto abria a porta após o fim da entrevista.
O que aconteceu
"Gosto de morar aqui, é perto de tudo. Mas fico com medo do prédio cair quando chove e começa a ventar forte". A declaração é de Maria Silva*, a moradora dona do canivete, quando a reportagem visitou o local no mês passado.
Ela tinha acabado de chegar em casa e estava fechando a porta quando foi abordada. Maria mora no edifício há quase 30 anos.
Quando a entrevista terminou na sala da casa, ela pediu licença e foi ao quarto buscar o canivete antes de abrir a porta. "Podem ter armado uma emboscada para gente. Aqui acontece muito isso, já teve até morte", alertou.
A preocupação não é exagero. Desde 2022, segundo a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, o prédio foi palco de um homicídio doloso (quando há intenção de matar), três furtos, dois casos de lesão corporal dolosa, três roubos e uma ocorrência de tráfico de drogas.
A moradora Ana Santos* conta que já presenciou algumas vezes policiais arrombando apartamentos. Ela reforça que há não só tráfico, mas intenso consumo de drogas no local. "Um dia desses, uma mulher morreu de overdose", disse.
Controle do prédio
Segundo os moradores, o edifício Júlia Cristianini é controlado, na prática, por um homem chamado de "Seu Luís". Ele não mora no prédio, mas é o proprietário com o maior número de unidades (cerca de 60) e exerce forte influência sobre o que acontece ali, incluindo na escolha do síndico.
O síndico Juninho renunciou após a visita da reportagem. Camilo Barnaba, também indicado por Luís, assumiu a gerência do edifício. Ele não mora no prédio, mas disse ao UOL que tem longa história e vivência na região, desde 1967.
Ao deixar um dos apartamentos após uma entrevista, Juninho abordou a reportagem no corredor e pediu que deixasse o prédio. "Vai dar briga. Acho melhor você sair", avisou.
Paula Ferreira* passou o número para conceder uma entrevista por telefone, mas desistiu da ideia quando foi procurada no dia seguinte. A moradora teme que ela e a família sofram retaliações caso relate problemas do edifício.
O UOL visitou o local duas vezes. Em uma das visitas, a reportagem bateu na porta de diversos moradores, mas apenas uma senhora atendeu. Ela abriu a porta, mas manteve a grade fechada.
Ela não quis dar detalhes da convivência no edifício, mas sugeriu que a reportagem buscasse pensões no local, que abrigam vários moradores. Uma das pensões visitadas abriga oito pessoas, divididas em beliches em um apartamento que não passa dos 40 m².
Inicialmente, o edifício foi descrito por inquilinos da pensão como tranquilo, mas, em alguns minutos de conversa, vieram os alertas. Dois homens disseram que é preciso tomar cuidado ao entrar e sair do prédio, por causa da insegurança na região, sob risco de roubos. Apesar de nunca terem presenciado crimes, eles confirmaram que qualquer pessoa consegue acessar o prédio.
Estrutura precária
À primeira vista, a fachada do edifício assusta quem passa pela rua General Osório. Ao entrar no prédio, a certeza é de que o local precisa de atenção.
O Júlia Cristianini tem pensões, depósitos e até uma adega entre os apartamentos. Gradeados, os imóveis se multiplicam em corredores escuros e com mofo. Há lixo espalhado em uma proteção colocada ao redor do prédio e, segundo os moradores, os dois elevadores passam a maioria do tempo quebrados.
Um rateio foi organizado pela administração do condomínio entre os moradores para realização de obras de segurança no prédio. Porém, uma moradora contou que, segundo o síndico, as obras estão paralisadas porque parte dos vizinhos não realizou o pagamento.
Ação do MP-SP se arrasta há dez anos
As condições de segurança do prédio são alvo de uma ação de 2015 do MP-SP (Ministério Público de São Paulo) contra a prefeitura. O órgão cobrava que o município avaliasse a estrutura e realizasse obras no edifício.
Três documentos produzidos por um perito entre 2018 e 2019, anexados ao processo, atestaram o risco de desabamento e de incêndio. "Não recomendamos a reforma, por principalmente ainda expor a grandes riscos os que habitam ou frequentam o local. Caso a opção de reforma se confirme com a presença dos condôminos, sugere este perito, além de rigoroso cumprimento dos itens acima, um rigoroso monitoramento do empreendimento", diz trecho do laudo produzido em abril de 2019.
Entre decisões favoráveis e contrárias à desocupação do prédio, os moradores realizaram obras de segurança no local. Em outubro de 2020, um engenheiro da Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras, que já havia emitido parecer contra a desocupação, disse que o condomínio havia gastado R$ 840 mil em reparos —o que, segundo a prefeitura, confirma o compromisso dos moradores com a segurança do edifício.
No mês seguinte, a Justiça determinou que a prefeitura acompanhasse as obras e oferecesse moradia social às famílias. Os moradores recusaram o cadastro e decidiram permanecer no edifício.
Os moradores não são invasores. Ao longo do processo, a Justiça confirmou que no prédio há proprietários ou inquilinos.
Prefeitura não informa condição do prédio
Em 2022, o MP-SP cobrou que a prefeitura cumprisse a determinação de fiscalizar as obras e cadastrar as famílias. Em abril de 2024, outra decisão judicial mandou o município fiscalizar as obras de segurança pagas por moradores e conferir a situação estrutural do edifício.
Procurada pelo UOL, a prefeitura afirmou que visitou o local em setembro de 2024 e constatou que as obras estavam em andamento. Apesar da decisão judicial também cobrar informações sobre as condições estruturais do prédio, o município não enviou os detalhes da vistoria à reportagem.
O atual síndico do edifício disse que as obras estão em andamento, mas acontece no "ritmo dos recursos financeiros". Ele afirmou que laudos comprovam que não há risco estrutural e que a fachada também será reparada, mas as obras contra incêndio são prioritárias e devem ser finalizadas nos próximos meses. Camilo ignorou as perguntas sobre a violência no local.
Após a reportagem entrar em contato com a prefeitura, o município pediu a extinção do processo sobre fiscalização das obras e cadastramento das famílias. O MP-SP pediu à Justiça que o caso siga em tramitação, já que as obras estão em andamento. O órgão também ressalta que a prefeitura ainda terá que analisar, após o fim dos reparos, se os riscos foram eliminados.
*Nome trocado para segurança do morador