Já foram 'vagões da morte': por que viajar de trem em SP hoje é mais seguro
Com uma malha ferroviária considerada segura por especialistas, o transporte de passageiros em trilhos de São Paulo já foi perigoso. Décadas atrás, grandes acidentes causados por combinações de fatores, deixaram dezenas de mortos.
O que aconteceu
Nos anos 1950, 1960, 1980 e até em 2000, colisões entre trens tiraram vidas, deixaram feridos e ganharam manchetes. A maioria desses acidentes aconteceu no caminho que levava passageiros aos bairros mais afastados da zona leste e aos municípios do Alto Tietê.
A maioria dos acidentes, principalmente os mais antigos, aconteceu em trilhos que foram reformados ou perto de estações que depois foram desativadas. Apesar de ficar "perto" de linhas de trem ainda ativas, como a 11-coral e a12-safira, elas eram, à época, administradas por outras companhias e tinham uma logística de segurança muito diferente das que vemos agora.
Atualmente, os acidentes são mais raros e menos letais. Especialistas atribuem isso a uma combinação de fatores, que incluem melhor administração das malhas ferroviárias, investimento e, principalmente, tecnologia.
Veja alguns dos maiores acidentes de trem em São Paulo
1950 - Cinquenta mortos em Engenheiro Goulart
Cinquenta pessoas morreram em 5 de junho de 1959 quando dois trens colidiram de frente na zona leste de São Paulo. A batida aconteceu no trecho entre as estações Engenheiro Gualberto (perto de onde fica a estação Carrão da linha 3-vermelha) e Engenheiro Goulart (que ainda funciona, como parte da linha 12-safira da CPTM).
Um dos veículos seguia da região do Brás em direção ao município de Poá - onde agora fica a estação Calmon Viana -, e outro saiu da zona leste para o centro de São Paulo. Um desvio por conta de obras fez com que o trem que saiu do centro andasse pelo mesmo trilho do trem que vinha da zona leste.
Causa do acidente foi determinada após investigação. Segundo as publicações da época, os trens bateram porque um agente de estação autorizou que o maquinista da composição que ia para o centro seguisse viagem, quando ele deveria ficar parado na estação Engenheiro Goulart para esperar a passagem do outro trem para o trilho correto. O maquinista que seguia para o Brás tentou frear, mas a alta velocidade do outro veículo fez com que o acidente acontecesse.
1987 - Em Itaquera, acontece o maior acidente registrado na cidade de São Paulo
O acidente ferroviário de Itaquera, que deixou 51 mortos em 17 de fevereiro de 1987, aconteceu após um trem colidir lateralmente com outro. Uma das composições ia da antiga Estação Roosevelt (no Brás) para Mogi das Cruzes, e a outra fazia o caminho contrário.
Uma manutenção nos trilhos fez com que o trem que saiu do Brás andasse na contramão por alguns quilômetros, indo na direção do trem que vinha de Mogi. O maquinista fez a manobra para retornar aos trilhos originais, mas a composição que vinha em alta velocidade no outro sentido não freou a tempo e colidiu com os vagões do meio do trem.
A princípio, a falha humana de um dos condutores foi apontada como a causa do acidente. O trem de Mogi estava a 70 km/h, velocidade considerada acima do normal para o tráfego. Os freios foram acionados a menos de 500 metros de distância do outro veículo, o que não deu tempo suficiente para a composição parar.
Uma perícia posterior, porém, mostrou que a sinalização na via não era suficiente. Um semáforo tinha sido retirado dos trilhos devido à manutenção que estava em curso, o que causou a demora na parada.
2000 - Nove pessoas morrem após trem atingir outro em Perus
O acidente com maior número de mortes nos últimos 25 anos aconteceu em 28 de julho de 2000. Um trem cheio de passageiros parado na plataforma da estação Perus foi atingido por outro veículo, em alta velocidade, que tinha sido estacionado em uma descida, sem calços, perto da estação Jaraguá da linha 7-rubi da CPTM.
A colisão deixou nove mortos, mais de 100 feridos e destruiu a plataforma e uma passarela da estação de Perus, que precisou passar por reforma. Investigações mostraram que a companhia sabia desde 1995 que o modelo de trem envolvido no acidente tinha problemas para ficar parado em inclinações.
12 anos após o acidente, a CPTM foi condenada a indenizar os 124 feridos e as famílias dos nove mortos. A estação precisou de uma reforma devido ao grau de destruição no local.
Região teve outro acidente com mortos 31 anos antes. Em março de 1969, 21 pessoas morreram e outras centenas ficaram feridas após um trem se chocar com um veículo de reboque a um quilômetro da estação Perus.
Na ocasião, o reboque foi acionado para consertar o trem, que tinha parado após um problema técnico. Um maquinista, porém, conseguiu fazer o conserto e o veículo seguiu viagem, colidindo de frente com o carro de ajuda, que vinha pelos mesmos trilhos.
Os acidentes são como um iceberg: o erro humano que aparece na superfície pode ser causado por problemas escondidos 'debaixo d'água', como equipamentos inadequados, treinamento falho, regras confusas, falta de manutenção. O que se busca é entender todo o cenário.
Igor Baria, doutor em engenharia de transportes pela Escola de Engenharia de São Carlos da USP, ao UOL
Consequências de acidentes
No caso de Itaquera, o acidente jogou luz na negligência da operadora em modernizar seu sistema de trilhos. A Companhia Brasileira de Trens Urbanos, responsável pela linha na época, estava em processo de mudança do sistema de operação de trens de Controle de Tráfego Centralizado, mais antigo, para o de Controle Automático de Trens, considerado mais seguro. A mudança, que se arrastava desde 1979, foi apressada e concluída em 1988, um ano após o acidente.
O Controle Automático de Trens poderia ter evitado ao menos dois dos acidentes listados acima. O sistema funciona como um "copiloto de alerta" para evitar falhas do maquinista, explica Igor Baria, doutor em engenharia de transportes pela Escola de Engenharia de São Carlos da USP. "Ele fica monitorando a velocidade e checando se o trem está obedecendo aos sinais [vermelho, amarelo e verde]. Se o maquinista, por qualquer motivo, acelerar demais ou não respeitar um sinal fechado, o sistema primeiro avisa. Se não houver reação, ele assume o controle e freia o trem automaticamente", afirma.
Após o acidente em Perus, a maioria dos trens que operavam na época foram trocados por versões mais modernas. Todos os veículos do modelo 1.700, aquele que desceu descontrolado após ficar sem calços, foram aposentados em 2019. Antes disso, porém, todos os trens pararam de circular com portas abertas e tiveram o sistema de freios aperfeiçoado, evitando que tragédias do tipo se repetissem.
Tecnologia ajuda a tornar trilhos mais seguros, explicam especialistas
As ações que antigamente eram feitas por operadores de controle com comando de voz e rádio são computadorizadas hoje. Isso diminui o risco de falhas, como explica o professor do Departamento de Engenharia de Transportes da USP, José Leomar.
Hoje há monitoramento da posição e da velocidade das composições, além de comunicação constante entre operadores e a Central de Controle de Operação, reduzindo o risco de acidentes e diminuindo a gravidade, caso eles ocorram.
José Leomar, professor da EESC-USP
Além do controle automático, existe a Central de Controle de Operação, pela qual os operadores conseguem ver toda a malha de trens em tempo real. Com isso, é possível ver quais veículos estão parados em caso de falhas ou se algum sinal de parada deixou de funcionar.
"Bolha digital" evita que veículos se aproximem de outros. O doutor Igor Baria também explicou que o sistema, chamado de CBTC (Communications-Based Train Control), cria uma região de segurança móvel em volta de cada uma das composições. Com esse monitoramento, se outro veículo ameaçar entrar na "bolha de segurança" do outro, ele tem a velocidade automaticamente ajustada ou o freio automaticamente acionado.
É como se os trens conversassem entre si e com a central para nunca chegarem perto demais. Isso não só evita colisões, mas também permite que mais trens usem a mesma linha com segurança.
Igor Baria
Os trens de hoje também são mais resistentes em caso de acidentes ou impactos. O avanço da tecnologia não se resume à "computadorização" dos comandos, mas também à construção dos novos veículos, que contam com sistemas mais modernos de frenagem. "É como a diferença entre um carro antigo e um moderno num teste de batida", explica Baria.
Treinamento dos funcionários segue sendo parte importante do sistema de segurança. Os maiores acidentes do estado foram causados por uma soma de falhas técnicas com ação ou omissão humana. Por isso, os especialistas em segurança ferroviária lembraram que o bom treinamento e o fornecimento de qualidade trabalhista para maquinistas, controladores de tráfego e operadores é essencial para continuar evitando acidentes.
Não bastam os avanços tecnológicos dos veículos e das vias se continuar havendo negligência, imprudência e imperícia por parte das pessoas responsáveis pela segurança das viagens.
José Leomar
A segurança nos trilhos pode ser vista como um banquinho: se um dos pés falhar, tudo pode desequilibrar. Não adianta ter a melhor tecnologia do mundo se as pessoas não forem bem treinadas para usá-la, para seguir os procedimentos corretos e, principalmente, para lidar com imprevistos e emergências que a tecnologia não consegue resolver sozinha.
Igor Baria
Ainda há espaço para melhorias. Igor Baria afirmou que outras tecnologias já disponíveis no sistema ferroviário mundial podem ser aliadas à segurança nos trilhos de São Paulo. Um melhor sistema para detectar intrusos nas vias, como barras de lasers e sensores, pode evitar atropelamentos. A inclusão de portas nas plataformas, o que já é visto em algumas estações do Metrô de SP, pode evitar que pessoas e objetos caiam ou sejam arremessados na via, contribuindo, assim, para a segurança de todos.