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Condenação de Marine Le Pen divide políticos, mas Judiciário francês reafirma independência

01/04/2025 12h41

No dia seguinte à condenação de Marine Le Pen por apropriação indébita de dinheiro público para pagar assessores parlamentares de seu partido, o Reunião Nacional (RN), sentença que também impôs à líder de extrema direita cinco anos de inelegibilidade e, portanto, a impossibilidade de concorrer na eleição presidencial de 2027, ela voltou a lamentar, nesta terça-feira (1º), que seja vítima de um "sistema". 

Esta expressão é frequentemente usada por outros líderes antissistema para definir as instituições democráticas. Porém, teria sido este um julgamento político, afinal? 

O assunto provoca debate na sociedade francesa, com parlamentares divididos sobre a condenação, enquanto um ex-magistrado sai em defesa da independência do Poder Judiciário.

De forma resumida, conforme decidiu a Justiça francesa em primeira instância na segunda-feira (31), Le Pen esteve no centro de um sistema de desvio de recursos do Parlamento Europeu que funcionou entre 2009 e 2016. À época, ela era eurodeputada e recebia dinheiro público para contratar assessores parlamentares. Porém, conforme entenderam os juízes que analisaram o caso, esses funcionários não atuavam em assuntos europeus, mas sim trabalhavam para o partido Reunião Nacional (RN) na França, da qual Le Pen é líder. Os valores desviados chegam a € 4,4 milhões, (cerca de R$ 24 milhões), dos quais € 1,1 milhão já foi reembolsado à instituição europeia. Outras 23 pessoas foram condenadas no julgamento. 

Sobre a sentença que pode mantê-la fora da corrida presidencial de 2027, fato que classificou como "uma bomba nuclear", em declarações nesta terça-feira a deputados do RN reunidos na Assembleia Nacional, a líder da extrema direita francesa insiste em dizer que se "o sistema usa uma arma tão poderosa contra nós, é obviamente porque estamos prestes a vencer as eleições", afirmou. 

Marine Le Pen vai recorrer da sentença, de acordo com seu advogado, Rodolphe Bosselut. A pena de cinco anos de inelegibilidade, com execução imediata, foi a mais pesada possível e não é suspensiva, nem mesmo durante a apresentação de um recurso, pois haveria um risco de recidiva, explicou a juíza presidente do tribunal, ao ler a sentença.  

Em entrevista à RFI, Frédéric Sawicki, professor de Ciência Política na Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne, observa que "Le Pen continua sendo deputada [na França] e poderia repetir o feito". O acadêmico julga que ela demonstrou "ingenuidade" ao deixar que a prática [pagamentos a assessores parlamentares com atuação partidária] tenha acontecido durante tanto tempo.  

Ele ainda analisa as reações da extrema direita à condenação. Para Sawicki, a resposta imediata do RN "coloca em voga uma ideia de injustiça, imposta por um sistema que impede as ideias de extrema direita" de circularem, discurso repetido, também, em outras partes do mundo. Contudo, na opinião do especialista, essa é uma narrativa que perde força, à medida que o discurso conservador avança no poder, citando o exemplo da eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, e a reeleição de Viktor Orbán, na Hungria. 

"Tirania dos juízes"

Nesta terça-feira, Jordan Bardella, atual presidente do RN por escolha de Le Pen, denunciou "a tirania vermelha dos juízes". "Temos a sensação de que, muitas vezes, ela se volta contra apenas um campo político", disse em entrevista às emissoras CNews e Europe 1, após a condenação de Marine Le Pen. Tudo será feito para nos impedir de chegar ao poder", reiterou ele. Por outro lado, o eurodeputado condenou "ameaças, insultos e abusos" contra os magistrados. Não por acaso, essas duas emissoras pertencem ao grupo do industrial ultraconservador Vincent Bolloré, 14ª maior fortuna da França em 2024, de acordo com o ranking da revista Challenges.     

Jordan Bardella traçou um paralelo entre o "clima" político na França e na Romênia, onde, segundo afirmou, o candidato de extrema direita foi privado de vitória potencial pelo cancelamento da eleição presidencial. Bardella anunciou o início de "mobilizações pacíficas" porque "não somos fascistas (...), somos pessoas razoáveis", observou. No caso da Romênia, a mais alta corte do Judiciário local anulou o resultado da eleição depois de recolher provas de ingerência da Rússia na votação.

Marine Le Pen e seu partido organizam uma contraofensiva política e midiática, em busca de apoio da opinião pública para obter uma audiência de apelação em segunda instância, de modo que ela possa eventualmente manter a sua candidatura presidencial. "Somos completamente inocentes nesta questão e, apesar disso, milhões e milhões de franceses estão sendo privados de seu candidato natural e legítimo na eleição presidencial", continuou Bardella.  

O presidente do RN, que pode ser designado para disputar a sucessão de Emmanuel Macron, caso o recurso judicial de Marine seja rejeitado, prometeu "lealdade total" à líder nacionalista. Ele afirma "ter uma dívida com ela". 

Em entrevista à TV na noite de segunda-feira, Le Pen contestou a decisão judicial contra ela: "o Estado de direito foi completamente violado" por "uma decisão política", disse. Ela relatou ter vivido um "dia desastroso para a democracia" e "práticas que pensávamos serem reservadas a regimes autoritários".   

O mesmo discurso foi repetido, nesta terça-feira, pela chefe do governo italiano, Giorgia Meloni, para quem a inelegibilidade da francesa por cinco anos privou "milhões de cidadãos de representação". "Não conheço os méritos das acusações contra Marine Le Pen, nem as razões para uma decisão tão forte", admitiu a líder do partido de extrema direita Irmãos da Itália ao jornal Il Messaggero. "Mas não creio que alguém que se importe com a democracia possa acolher uma sentença que afeta o líder de um grande partido e priva milhões de cidadãos de representação", continuou ela.  

Antes de Meloni, outros líderes ultraconservadores manifestaram apoio a Le Pen, entre eles o vice-primeiro-ministro italiano e líder da Liga, Matteo Salvini, o presidente russo, Vladimir Putin, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, o empresário americano Elon Musk, o líder da extrema direita holandesa, Geert Wilders e o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro.  

"Justiça não é política" 

Diante da enxurrada de críticas ao veredicto que estipulou quatro anos de prisão, sendo dois em regime aberto, € 100 mil de multa e cinco anos de inelegibilidade para Le Pen, um dos magistrados mais graduados do país, Rémy Heitz, declarou, nesta terça-feira, que "a decisão não foi política, mas judicial, proferida por três juízes independentes e imparciais".

"Foi uma decisão tomada de acordo com as regras que são a base da nossa democracia", declarou o Procurador-Geral do Tribunal de Cassação, em entrevista à emissora RTL. "A decisão foi proferida no final de um julgamento que teve todas as características de um julgamento justo, após um debate contencioso que durou dois meses e de uma investigação que durou anos", reagiu o magistrado. Esta decisão "foi tomada de acordo com a lei, em aplicação dos textos votados pela representação nacional", insistiu Rémy Heitz. Os juízes "aplicaram a lei e as penas previstas em lei", observou. 

Ele descreveu como "inaceitáveis" os "ataques altamente personalizados contra magistrados e as ameaças que poderiam levar a processos criminais", dizendo estar "chocado" que a presidente do tribunal, que emitiu a decisão, tenha sido colocada sob proteção policial. "É completamente anormal que um magistrado esteja sendo atacado", disse Rémy Heitz, pedindo "alívio das tensões", "moderação e calma". "Vamos permitir que a Justiça faça seu trabalho com total independência", defendeu o magistrado. 

Parlamentares se dividem 

Diante de uma reviravolta tão importante para as próximas eleições na França, políticos de diferentes correntes reagiram. Enquanto alguns preferem deixar que a Justiça faça a sua parte, outros atacam o que chamam de interferência no direito soberano dos eleitores de decidirem o futuro do país.

"A justiça está sendo expressa e cabe a nós respeitá-la, ainda mais como políticos", reagiu Prisca Thévenot, deputada do partido Renascença (centro).  

"A lei é a mesma para todos. Não há desculpa: quando você rouba o dinheiro dos franceses, você é punido", disse Cyrielle Chatelain, presidente dos Ecologistas. "Quando você é eleito, você tem o dever de dar o exemplo", acrescentou.  

Para Laurent Wauquiez, do partido Os Republicanos (LR), à direita, "não é saudável que, em uma democracia, um parlamentar seja proibido de concorrer a uma eleição".  

François-Xavier Bellamy, do mesmo partido (LR), expressou a esperança de que "o povo francês tenha a garantia da imparcialidade do sistema de Justiça que decide em seu nome". 

O secretário do Partido Socialista (PS), à esquerda, Olivier Faure, foi mais longe no X: "Putin, Medvedev, Trump, Musk, Bolsonaro, Orbán, Salvini, Wilders, a internacional reacionária a serviço da extrema direita francesa", escreveu. "A luta contra a democracia, contra a República entrou em uma nova fase e exige a determinação de todos os democratas", completou. 

O partido de extrema esquerda A França Insubmissa (LFI) publicou uma nota na qual afirma que "os fatos comprovados são particularmente sérios". "Eles contradizem completamente o slogan 'cabeça erguida, mãos limpas', que este partido [RN] defende há muito tempo", acrescenta. Porém, ao defender o direito ao recurso por parte dos condenados, a França Insubmissa reitera que "nunca usou um tribunal para se livrar" de adversários políticos, os quais "combate nas urnas".

(Com RFI e AFP)

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