"Sob o bolsonarismo, 'Ainda Estou Aqui' jamais teria sido produzido", diz Marcelo Rubens Paiva
O roteirista, escritor, dramaturgo e gaitista Marcelo Rubens Paiva está em Paris para participar de um encontro na universidade Sorbonne Nouvelle nesta sexta-feira (28). Em entrevista à RFI, ele falou sobre seus novos projetos, após o sucesso mundial de "Ainda Estou Aqui", e comentou a decisão da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) que tornou réus, na quarta-feira (26), o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros sete aliados por tentativa de golpe de Estado.
Daniella Franco, da RFI em Paris
"Esse julgamento é, para mim, a trajetória do óbvio, é o que estava escrito", diz Marcelo Rubens Paiva. Para o autor de "Ainda Estou Aqui", obra em que foi baseado o filme homônimo de Walter Salles, não há dúvidas de que houve uma tentativa de golpe de Estado após a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva.
"Todo mundo que é bem informado, que não se informa apenas pelas fake news e mentiras das redes sociais, as pessoas que leem e que sabem o que está escrito nas entrelinhas, as pessoas que viram as imagens do que estava acontecendo em Brasília [em 8 de janeiro de 2023], viram que era evidente que aquilo iria acontecer", ressalta.
No entanto, o escritor não acredita que haja espaço para um novo regime autoritário no Brasil hoje, a exemplo do período militar que viveu e retrata no livro "Ainda Estou Aqui", quando seu pai, o ex-deputado e engenheiro Rubens Paiva, foi preso e morto nas dependências de um quartel do Rio de Janeiro, em 1971.
"Há um esgotamento do ideal autoritário no Brasil. Não é mais uma tese popular. Uma pequena porcentagem de pessoas acreditava que a solução seria um golpe de Estado, e não fazia o menor sentido aquilo", diz, referindo-se ao projeto de Bolsonaro e aliados.
No entanto, Marcelo reconhece que a situação "assusta" e lembra que o golpe de 1964 ocorreu de forma similar ao planejado pela atual extrema direita brasileira, "sob iniciativa de uma minoria que acabou convencendo uma maioria". "Se nós estivéssemos hoje vivendo sob o bolsonarismo, certamente muitas desgraças estariam acontecendo. O 'Ainda Estou Aqui' jamais teria sido produzido e talvez eu estivesse preso ou exilado", ressalta.
Presença requisitada na Sorbonne Nouvelle
Marcelo Rubens Paiva está em Paris para participar de um encontro na universidade Sorbonne Nouvelle nesta sexta-feira, dentro do ciclo "Primavera Brasileira". Os ingressos para o evento estão esgotados há semanas. Segundo o co-diretor e idealizador do ciclo, o professor Leonardo Tônus, a vinda do autor de "Ainda Estou Aqui" foi um pedido dos próprios universitários.
"Para a minha vida literária, é algo inédito", comenta Marcelo. Segundo ele, a solicitação ocorre por dois motivos: o imenso sucesso do filme de Walter Salles na França, onde o longa-metragem registrou a maior bilheteria na Europa, e o interesse de jovens acadêmicos pelas consequências de regimes autoritários no mundo.
"Os estudantes estão muito preocupados e muito interessados nesses temas recorrentes atualmente em relação a regimes autoritários, à luta democrática, ao passado, à memória, à abertura de arquivos", afirma. "Esse tipo de assunto está despertando na juventude do mundo todo, inclusive do Brasil, muito interesse para ser debatido", reitera.
Além disso, para Marcelo, a curiosidade do público francês pelo filme, que segue em cartaz no país quase três meses após a estreia, se deve à universalidade da trama, que classifica de feminina e feminista. "É sobre uma mulher, com cinco filhos, injustamente viúva, e que tem que lutar para se reconstruir, educar seus filhos e recuperar sua dignidade", resume. "Se você olha hoje o que acontece com as pessoas na Hungria, em Gaza, em Israel, agora, nesse momento nos Estados Unidos, onde há gente sendo pega na rua para ser expulsa, na Argentina, no Irã, e em muitos outros países autoritários, você vê que o tema do filme não morre", completa.
Já sobre a polêmica matéria do jornal Le Monde, onde a atuação de Fernanda Torres foi classificada de "monocórdica" por um jornalista do diário, Marcelo se diverte. "Na verdade essa crítica é um elogio", diz. "Eu acho muito engraçado, porque a interpretação dela é propositalmente monótona, contida, interiorizada. É um drama profundo, de uma dor profunda", salienta. "Ela [Fernanda Torres] conseguiu aquilo que provavelmente o diretor [Walter Salles] pediu e que a personagem pedia, que ela não expusesse o seu sofrimento, que é como era a minha mãe."
Para o escritor, a atuação de Fernanda Torres é completamente fiel à Eunice Paiva: "é assustador". "A voz dela, a tonalidade, a calma, a esperteza, a forma como ela segurava as emoções", enumera, foram características que a atriz conseguiu reproduzir com maestria no longa-metragem que recebeu o Oscar de melhor filme internacional, no início deste mês.
Marcelo também exalta o trabalho de Selton Mello, que interpreta Rubens Paiva no filme. "Selton Mello não conheceu meu pai, ninguém tem vídeos do meu pai, a não ser fotos. Todo o personagem que ele construiu foi baseado nas informações que captou do livro, de testemunhos, de um ou outro amigo que ele entrevistou, e das coisas que nós, filhos, falamos. Selton reconstruiu esse personagem do nada. E é algo absolutamente perfeito, foi como se eu estivesse revendo meu pai", conta.
Novo livro e Lost in Translation
Marcelo se prepara para o lançamento de seu próximo livro, "O Novo Agora", que fala sobre a sua paternidade. O trabalho é o encerramento da trilogia autobiográfica, que teve início com "Feliz Ano Velho", lançado em 1982, e que ganhou sequência com "Ainda Estou Aqui", em 2015. A obra adaptada para o cinema também foi traduzida para o francês, entre várias outras línguas, e chegará em breve às livrarias da França.
O escritor revela à RFI que em breve começará a se dedicar 100% à música. Marcelo é o líder da banda Lost in Translation, formada com amigos músicos de longa data. "Começamos de brincadeira a nos encontrar, e esse projeto foi ganhando fôlego, foi ganhando sentido, e começamos a misturar aquilo que eu sei fazer e que eles sabem fazer. Eu sei fazer traduções, poesia, mexer com as palavras, usar referências musicais, compor, e eles sabem tocar."
O objetivo do grupo de rock e folk, como o próprio nome diz (perdido na tradução), é readaptar faixas de grandes músicos e compositores para valorizar o significado de suas letras. No repertório, Bob Dylan, Lou Reed, Leonard Cohen, Patti Smith, entre tantos outros artistas icônicos.
Nascido há dois anos e meio, o projeto agora evolui para a criação de composições originais. De pequenos bares, as apresentações da Lost in Translation foram levadas para grandes casas de shows no Brasil.
Encerrado o ciclo de "Ainda Estou Aqui" e após o lançamento de "O Novo Agora", Marcelo planeja ser "mais rock 'n' roll do que nunca" em 2025. "Vou me enfurnar no estúdio, no palco e me dedicar 100% à música", prevê. "Ou se puder juntar literatura com música seria ideal: fazer show com a minha banda em uma feira literária", brinca.