Número de negros em cargos-chave do Governo Federal cresceu 367% desde 1999
O número de pretos e pardos que ocupam cargos de liderança no Governo Federal saltou de 3.262 em 1999 para 15.237 no ano passado.
O que aconteceu
Estudo foi produzido pelo Afro-Cebrap com apoio da Fundação Lemann. Apesar de homens brancos e amarelos ainda ocuparem 35% das vagas do tipo, o levantamento indica que homens e mulheres negros já representam 39% dos ocupantes dessas vagas.
Levantamento considerou cargos de alta e média autoridade. Ministros e secretários executivos integram o primeiro grupo, enquanto diretores, assessores e coordenadores gerais compõem o segundo segmento. Os dois casos envolvem altos gestores que comandam equipes e tomam decisões nas vagas que ocupam.
Quanto maior a autoridade de um certo cargo, menor é o crescimento da fatia de pretos e pardos que o ocupam no período analisado. Além disso, o crescimento é maior em setores sociais do que em áreas estratégicas e centrais do estado --como economia e planejamento. Cargos mais altos ainda são de homens brancos.
Flávia Rios, coordenadora de pesquisa do Afro-Cebrap, socióloga e professora da Universidade de São Paulo
Ministério dos Povos Indígenas é a pasta com maior número de homens pretos, pardos e indígenas em cargos de liderança. O grupo responde por 39% do total das vagas. Mulheres pretas, pardas e indígenas representam 22%.
Cultura, Esporte e Educação têm mais de 20% dos cargos de lideranças ocupados por mulheres pretas, pardas e indígenas. O mesmo acontece na pasta de Gestão e Inovação. O estudo identificou uma concentração de pessoas negras nas áreas de saúde, educação e atendimento ao público.
Relações Exteriores e Fazenda são ministérios com maior percentual de homens brancos e amarelos em cargos de liderança. Nas pastas, o grupo responde por 51% e 50% do total das vagas. Planejamento (45%) e Justiça (45%) também se destacam nesse sentido.
Análise se baseou em dados do Painel Estatístico de Pessoal. A base de dados oficial é aberta, disponível para consulta online e reúne informações sobre os servidores ligados ao Governo Federal.
Regras aprovadas no período analisado aumentaram a presença de negros no Governo Federal. Em 2014, a Lei 12.990 estabeleceu a reserva de vagas para pretos e pardos em concursos federais. Nove anos depois, o Decreto 11.443 determinou níveis mínimos a serem preenchidos por negros em cargos em comissão e funções de confiança.
O aumento da presença de pretos e pardos em cargos de liderança é motivo de alegria. Mas o que me preocupa é a alta liderança. Vemos muitos negros em cargos de entrada e não sei até que pontos eles estão sendo preparados para chegar no topo. Na viagem do Lula ao Japão, por exemplo, a única pessoa negra que víamos nas imagens era a ministra Marina Silva. Onde estamos errando?
Deives Rezende Filho, fundador da Conduru Consultoria, focada em diversidade
Estudo também envolveu entrevistas
De 20 líderes negros entrevistados, só um tinha apenas ensino médio. A maioria informou ter estudado em universidades públicas e possuir cursos de pós-graduação ou especialização. O estudo entrevistou 10 homens e 10 mulheres das 5 regiões do país.
Em uma das entrevistas, servidor relatou ter sido vítima de preconceito. O entrevistado relatou ter dificuldade em ser reconhecido como secretário de Estado e disse já ter sido confundido com segurança, porteiro e até pastor —além de ter sido barrado em prédios e eventos oficiais por conta do mesmo motivo.
Em outra conversa, um secretário informou que sua avó foi empregada doméstica de Juscelino Kubitschek. Em geral, as lideranças entrevistadas vieram de classes populares e se valeram de carreiras no funcionalismo público, na universidade, em partidos políticos ou movimentos sociais para chegarem aos cargos.
"Lista negra" ajuda pretos e pardos a acessarem cargos. Segundo Flávia, uma rede de indicações por parte de funcionários negros que já estão na máquina pública é apontada como estratégica para acesso a vagas de liderança. A participação em equipes de transição de governo e a opção por vagas de assessoria especial (mais próximas de ministros) são outros expedientes utilizados.
Todos os entrevistados são muito qualificados do ponto de vista técnico e profissional e muitos mencionaram que, quando uma liderança negra ascende, leva consigo outros pretos e pardos a postos de destaque. São pessoas comprometidas com o social e que se sentem mal por serem vistas como a exceção que confirma a regra em termos de raça, o que faz com queiram ter mais pretos e pardos como colegas de trabalho.Flávia Rios, coordenadora de pesquisa do Afro-Cebrap, socióloga e professora da Universidade de São Paulo
Apesar do maior acesso, carreira ainda é desafio. Flávia afirma que para postos como o de embaixador, a idade é um dos fatores considerados, e o fato de pretos e pardos chegarem mais tarde a esses espaços em função das dificuldades estruturais geradas pelo racismo os impede de alcançar o topo da carreira.
Empresas, órgãos públicas e autarquias precisam ser preparados para receber e acolher pretos e pardos. Isso inclui a criação de canais de diálogo para que eles possam informar sobre eventuais desconfortos e a definição de planos de carreira que permitam a retenção e o desenvolvimento de talentos.Deives Rezende Filho, fundador da Conduru Consultoria, focada em diversidade
Todos os entrevistados pela pesquisa defenderam a reserva de vagas no serviço público para negros por meio de cotas. Apesar dos avanços, o tema ainda é motivo de polêmica no Brasil. Em fevereiro, uma decisão da Justiça Federal determinou que o Exército reserve vagas para quilombolas, pessoas com deficiência e egressos de escolas públicas (especialmente pretos, pardos e indígenas) nos concursos de admissão dos colégios militares.
Coordenadora do estudo destaca a importância de monitorar dados. "Isso nos permite saber o que avançou mais e menos, além de investigar as razões por trás de cada movimento", afirma Flávia. Ela defende ainda que formações periódicas para que gestores brancos saibam encontrar lideranças negras qualificadas são necessárias para redução das desigualdades.
A escuta das lideranças negras em altas posições de decisão indica que, apesar de serem oriundas de famílias pobres ou de classe média baixa e de a maioria delas não terem sido beneficiárias das políticas de ações afirmativas, essas pessoas não defendem um discurso meritocrático. Ao contrário, entendem que as ações afirmativas são importantes para garantir a diversidade no Estado, uma vez que percebem fortes desigualdades na administração pública e sentem a necessidade de uma burocracia mais representativa.Trecho do Relatório Executivo Lideranças Negras no Estado Brasileiro (1995-2024)