Cidades francesas recuam na moda da apicultura urbana, prejudicial à diversidade de abelhas
Nos anos 2010, em pleno boom da conscientização ambiental, a moda "ecologicamente correta" da apicultura urbana invadiu as grandes cidades europeias. Uma certa competição entre grandes empresas e monumentos que tinham ou não produção de mel nos seus telhados chegou até a se criar. Mas, hoje, a tendência se inverteu: prefeituras chegam a proibir a instalação de novas colmeias.
Lúcia Müzell, da RFI em Paris
Estudos indicam que a expansão desmedida da prática é prejudicial à biodiversidade - não apenas afeta a variedade de espécies de abelhas, como também a das flores e outras plantas polinizadas por elas. Em Paris, por exemplo, o número de colmeias amadoras ou semiprofissionais disparou em uma década, passando de uma centena para mais de 2,2 mil, segundo dados de 2021 do Ministério da Agricultura.
A bióloga Isabelle Dajoz, pesquisadora do Instituto de Ecologia e Ciências Ambientais de Paris, estudou o impacto desta multiplicação das colônias. "As pessoas acreditam que a abelha é um símbolo da biodiversidade e do bom funcionamento dos ecossistemas, mas ela é apenas uma espécie de polinizador entre outras. Quando dizem que vamos salvar as abelhas colocando colmeias por todo o lado, é como se disséssemos que 'para salvar os pássaros, vamos espalhar galinhas em todos os lugares'", compara.
Só na França, existem mais de 1.000 espécies de abelhas - o problema é que apenas uma, a Apis mellifera, também conhecida como abelha europeia, é usada em massa na apicultura, pela sua alta resistência e produtividade.
"Quanto mais densidade de colmeias de abelhas europeias temos, menos haverá polinizadores selvagens, incluindo outras espécies de abelhas, mas também borboletas, moscas e outros insetos. Isso sugere uma competição pelo acesso às flores, portanto acesso à comida: o pólen e o néctar", afirma a pesquisadora. "Se tudo, ou quase, for devorado pelas abelhas europeias, podemos supor que teremos um efeito na densidade das populações de abelhas selvagens."
Superpopulação de uma única espécie de abelha
Da Ópera de Paris ao Grand Palais, passando por restaurantes chiques e grandes lojas de departamento, todo mundo passou a produzir o seu mel exclusivo, com a desculpa fazer um gesto pelo planeta - um argumento que revolta Hugues Mouret, diretor científico da organização Anthropologia, que sensibiliza sobre a proteção dos insetos.
"Três ou quatro colmeias em um dado espaço não tem problema. Com 50, todo o alimento disponível naquela área é capturado", lamenta ele, ao explicar que apenas uma colônia de abelhas europeia consome em três meses o equivalente ao que comem 100 mil abelhas selvagens. A existência de mais de três colmeias por quilômetro quadrado já atrapalha a atividade polinizadora dos insetos. Hoje, a média francesa é de 17 colônias, segundo ele.
"Mas nada disso importa para as pessoas que tentam vender esse modelo econômico de 'vejam, agora temos colmeias aqui, estamos salvando a biodiversidade e você tem a chance de ter um mel local'. Os preços podem ser indecentes, chegam a 150 euros o quilo, o que é um completo delírio", salienta.
Paris queria ser a 'capital das abelhas'
Diante dos alertas de cientistas e organizações naturalistas, prefeituras começaram a recuar. Lyon e Nantes acabaram com as novas autorizações de colmeias urbanas e têm buscado diminuir o número das já instaladas - com o apoio de entidades de apicultores profissionais, preocupados com a qualidade inferior do mel devido à queda da diversidade de polinizadores.
Paris - que em 2016 havia lançado um plano para transformar na "capital das abelhas" - parou simplesmente de comunicar sobre o assunto.
"É de bom senso que precisamos. Não é uma questão de proibir nem de dizer que não gostamos das abelhas melíferas - eu mesmo sou apicultor amador. Mas se nós continuamos a só ver as coisas pelo prisma da produção alimentar, vamos destruir os espaços que nos rodeiam - e dos quais dependem as nossas produções alimentares, que precisam de diversidade", indica Mouret.
"Quando compreendermos isso e deixarmos um espaço decente para a vida selvagem, ao abrigo das atividades humanas, as coisas serão bem diferentes. Todos ganharemos."
Maior ameaça são agrotóxicos
O naturalista ressalta, entretanto, que a apicultura urbana está longe de ser o maior problema das abelhas: as verdadeiras ameaças à sua sobrevivência é a poluição, em especial por agrotóxicos, e a destruição dos seus habitats naturais.
Neste sentido, a "pausa" decidida pelo governo francês para a adoção do plano de redução de produtos fitossanitários, sob pressão dos principais sindicatos agrícolas, representa um retrocesso importante para a conservação dos insetos. O plano visa o corte pela metade do uso de agrotóxicos no país até 2030 e a aceleração das pesquisas por soluções alternativas na agricultura, menos prejudiciais ao meio ambiente. Mas, em meio a sucessivas revoltas de agricultores, o governo cedeu e suspendeu o projeto.
Os recuos também têm ocorrido em nível europeu, por medidas da Comissão Europeia, em meio à ascensão da extrema direita no bloco.
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