SP deixa presos estrangeiros sem contato familiar por anos: 'Estresse alto'
A SAP (Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo) descumpriu prazo estabelecido pela Justiça para apresentar um cronograma de regularização do sistema de contato familiar via internet para presos estrangeiros. A Procuradoria-Geral do Estado disse estar adotando medidas.
O que aconteceu
Estrangeiros presos na Penitenciária de Itaí, no interior de São Paulo, estão há mais de quatro anos sem qualquer contato familiar. Os detentos também relatam condições precárias dentro do presídio, como falta de acesso a atendimento médico e remédios. Os casos motivaram ação da DPU (Defensoria Pública da União) para garantir que o estado regularize a situação.
O prazo para a gestão pública apresentar o cronograma para adequação do sistema se encerrou em 19 de março, segundo a DPU. A Justiça definiu a apresentação do modelo em 90 dias, o que ainda não ocorreu. Agora, a defensoria vai questionar a Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo pela não apresentação de resposta.
Em 11/11/24, foi deferida a liminar para determinar que o Estado, por meio da Secretaria de Administração Penitenciária, apresentasse, no prazo de 30 dias, um cronograma para viabilização permanente de correspondências e visitas virtuais de pessoas estrangeiras a seus familiares presos. A SAP recorreu e o TJ, em 19/12/24, ampliou o prazo para 90 dias.
Tribunal de Justiça de São Paulo
A maioria dos homens que cumpre pena em Itaí é preso por tráfico. Eles foram capturados fazendo transporte de drogas.
Foi o Consulado das Filipinas que informou a DPU e a Defensoria Pública do Estado sobre a situação no presídio paulista. Ao UOL, o órgão explicou que familiares de dois presos não sabiam do paradeiro dos homens há nove meses, cogitando até suas mortes. Por isso, questionou a SAP sobre a falta de contato com as famílias, o que gerou uma ação civil pública contra a SAP em novembro de 2024. A Justiça, então, definiu um prazo para que o governo apresentasse o cronograma de implementação do programa.
Os filipinos presos conseguiram progressão de regime após envolvimento do Consulado. Atualmente, os dois residem na capital paulista e conseguiram trabalhos com auxílio diplomático. Mas presos de outras nacionalidades seguem sem saber se poderão contar com os benefícios de progressão e com as visitas.
Após saírem do presídio, pela concessão do regime aberto, foram enviados para São Paulo de ônibus, sem qualquer informação aos familiares. Se perderam após sair do ônibus e só foram encontrados pelo consulado de madrugada.
Carlos Augusto Passos dos Santos, advogado dos filipinos
A reclamação é recorrente naquela unidade prisional. Para a permissão de contato via videoconferência, a SAP exige documentos nacionais dos familiares, como RG e CPF. As visitas online foram adotadas na pandemia, para que detentos brasileiros continuassem tendo o direito. Mas os estrangeiros e seus familiares não têm esses documentos, já que não moram no Brasil.
Há um "estresse" já que os presos que não conseguem visitas e têm dificuldades para se comunicar com os agentes penais brasileiros, relatou uma fonte ao UOL. Na penitenciária Cabo PM Marcelo Pires da Silva, popularmente chamada de "presídio dos estrangeiros de Itaí", estão cerca de 1.785 presos, entre estrangeiros e brasileiros, para uma capacidade de 1.294.
O estresse é alto, muitos funcionários e presos doentes. Alguns já se acostumaram com esta vida e com a solidão, mas vários retornam para o crime, não conseguem sair do tráfico, porque não contam com apoio de ninguém. Aqueles que chegam pela primeira vez também sofrem muito.
Relatou uma fonte, em condição de anonimato
Contato com a família promove reinserção social
A família é uma peça importante para reinserção social, e o contato com parentes é assegurado pela Lei de Execução Penal do Brasil. O advogado Júlio Cesar Santos, que atende estrangeiros da Bolívia, Colômbia, México e Guiné, explica que sem uma ação efetiva da SAP, fica inviável reeducar o preso.
Presos estrangeiros poderiam conseguir essa visita via internet. Não há uma investigação consular para saber se a família dessas pessoas tem condições mínimas, se sabe que a pessoa está presa, se tem mandar uma carta em outra língua para que não se perca.
Bruno Shimizu, defensor público do estado de São Paulo
O tratamento mais humanizado diminui a reincidência criminal. É papel do Estado a cooperação para melhor reeducação dos presos nacionais e estrangeiros. Nos casos dos presos estrangeiros, a SAP não cumpriu a ordem judicial e tenta a todo custo justificar isso, pois não gera comoção da sociedade. Esse descaso é normalizado no sistema penitenciário paulista.
Carlos Augusto Passos dos Santos, advogado dos filipinos
O que diz a SAP
A SAP argumenta que está agindo para viabilizar a infraestrutura, e nega que haja omissão. No processo, informou que a administração enfrenta "desafios complexos" para a implementação do sistema de visitas via internet. Procurada pela reportagem, a pasta não retornou.
A Procuradoria Geral do Estado de São Paulo disse que acompanha as ações da SAP para viabilizar a videoconferências. "O cronograma de desenvolvimento da infraestrutura será apresentado em juízo no momento processual adequado", disse.
Após publicação da reportagem, a SAP encaminhou nota dizendo que os presos "podem receber cartas de familiares em sua língua pátria" — que, portanto, não estariam impossibilitados do contato. A pasta informou que está trabalhando na finalização do cronograma e negou que tenha descumprido o prazo estabelecido pelo Juízo.
Sem remédios e atendimentos
Presos relatam falta de insumos médicos. Em Itaí, há mais burocracia que o normal para qualquer pedido, disse um advogado que representa os presos na unidade. Documento obtido pelo UOL mostra que a última vistoria no presídio pela Defensoria foi em 2022.
A vistoria detectou diversas irregularidades, entre elas remédios vencidos, tratamentos médicos interrompidos e portadores de HIV sem tratamento. "É difícil entrar alimentação, medicamento, roupas. Isso prejudica muito os presos", relata Júlio Cesar Santos. Para atendimento médico, é preciso petição assinada por juiz. Após a publicação da reportagem, a SAP informou que o presídio conta com uma equipe de profissionais de saúde, incluindo dois médicos e duas enfermeiras, além de dentista e assistente social. A gestão penitenciária estadual ainda pontuou que acontecem atendimentos externos por meio do SUS.
Policiais penais se dizem sobrecarregados. Eles acumulam o atendimento aos presos, aos consulados e à Polícia Federal e não não recebem capacitação em idiomas, o que dificulta o trabalho.
Quem está detido, teme fazer denúncia e acabar punido. O UOL falou com a mulher de um preso estrangeiro, que terá a identidade preservada, que seu marido não fala sobre os problemas do presídio por medo de perder seus direitos. Ela se mudou para o Brasil justamente para ficar próxima do homem.
A verdade é que tenho um pouco de medo de falar, já que por qualquer coisa suspendem as visitas das companheiras.
Esposa, em anonimato