Moradores da última favela do centro de SP temem parar na rua após remoções
A promessa do governo paulista de requalificar o centro de São Paulo com "valorização imobiliária" inclui acabar com a comunidade do Moinho, a última favela remanescente no centro da capital. Enquanto a gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) afirma que vai reassentar todas as famílias da região, moradores temem não conseguir se manter nas moradias propostas pelo estado.
O que aconteceu
Plano estadual prevê a remoção das mais de mil famílias da comunidade. No lugar, serão criados um parque e uma estação ferroviária. Em nota, a CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo), responsável pelo reassentamento, afirma que o governo busca realocar as famílias "em moradias seguras e dignas", para, posteriormente, "requalificar a área".
CDHU pretende transferir famílias para moradias financiadas dentro e fora do centro. Uma das opções é a oferta de uma Carta de Crédito Individual para o morador adquirir um imóvel pronto, pré-selecionado pela CDHU ou disponível no mercado e escolhido pelo morador.
Valor dos imóveis financiados não pode passar de R$ 250 mil, caso estejam na região central. Em outras regiões da cidade ou outros municípios, o valor máximo é de R$ 200 mil.
Financiamento proposto é de 20% da renda de cada família. Na comunidade, a renda média domiciliar é de cerca de um salário mínimo, segundo levantamento da própria CDHU.
Prestações deverão ser pagas em até 30 anos, como prevê a política habitacional. O período é o mesmo da duração do contrato de parceria público privada entre o governo e as empresas responsáveis pelas obras de requalificação e administração de imóveis no centro da cidade. A proposta do estado também inclui um auxílio moradia de R$ 800. O valor será pago pelo governo estadual e pela prefeitura até que os moradores sejam realocados nos novos imóveis.
Lideranças comunitárias do Moinho alegam que plano estadual não leva em conta realidade local. "Não conseguimos pagar o que estão exigindo para que a gente saia daqui", diz uma representante da associação de moradores do Moinho que pediu para não ser identificada por receio de dificultar as negociações que tenta articular junto ao órgão estadual.
Se sairmos daqui para pagar uma moradia que não vamos conseguir sustentar, vai dar um tempo e vamos parar na rua ou em outra comunidade. Aliás, é assim que surgem as favelas. A questão é que eles pretendem jogar essas comunidades pras periferias. No centro novo e bonito que eles querem, não podemos ficar. Liderança da associação de moradores do Moinho
As pessoas aqui já vivem numa condição sub-humana, muitas vivendo de doação de marmita. Imagina tendo que gastar 20% do salário, além de condomínio, água e luz? Não sobrevive. A conta não fecha. Outra representante da associação de moradores do Moinho
Liderança diz que funcionários da CDHU debocham de moradores que pedem isenção ou parcelas mais baixas de financiamento. "A gente vai em reunião com eles e apresenta fatos sobre a nossa realidade, pedimos para considerarem uma isenção ou parcela menor [que os 20% da renda familiar] para as pessoas mais vulneráveis. Aí eles debocham da gente e dizem que 'de graça não tem graça'".
CDHU afirmou em nota que "não houve recusas" dos moradores em aderir ao cadastramento para o reassentamento. "Até o momento, mais de 80% das famílias já iniciaram o processo de adesão ao atendimento habitacional, e mais de 250 foram habilitadas", seguiu. Acrescentou ainda que "as unidades habitacionais disponibilizadas contam com subsídios significativos e financiamento proporcional à renda familiar". A CDHU informa, ainda, que a cobrança de parcelas proporcional à renda, com limite de 20% dos ganhos familiares, é previsto por lei na política habitacional do Estado.
"Ninguém passa a viver na favela porque quer, estamos aqui porque não temos para onde ir", diz liderança local. "Só que a gente não consegue pagar o que estão exigindo para que a gente saia daqui. O problema é esse. Entendemos que vamos ter que sair, mas queremos sair de forma digna e humana, de uma forma que a gente consiga sobreviver".
Acordo com governo federal
Área do Moinho pertence à União. A SPU (Secretaria do Patrimônio da União) confirma que "o governo do estado solicitou a cessão de uma área para a implantação do Parque do Moinho", mas ressaltou que "a transferência do terreno está condicionada à garantia do direito à moradia das quase mil famílias que vivem no local". Ainda não há previsão para a cessão da área, porque depende da entrega pela CDHU "de um plano de reassentamento que contemple as necessidades dos moradores". Somente depois disso "será possível avançar nos trâmites administrativos para a formalização do contrato de cessão", conclui o órgão.
Antes de aceitar plano, associação de moradores propôs reurbanização e regularização fundiária. A ideia era para manter famílias juntas na comunidade. O pedido, porém, foi negado pela Defesa Civil paulista, que justificou a negativa "devido à configuração de risco" para moradia no local.
Comunidade é cercada por trechos das linhas 7-Rubi e 8-Diamante da CPTM. Por isso, o acesso ao Moinho, no bairro de Campos Elísios, é uma entrada atravessada por trilhos. Moradores convivem com barulhos e tremores pela passagem constante dos trens. Segundo documento da CDHU apresentado aos moradores, a regularização fundiária não é viável pela proximidade com as linhas férreas, em razão da situação de confinamento e do histórico de incêndios". Além disso, "há também a situação de extrema precariedade" das moradias.
Moradores tentam receber do poder público garantias básicas de segurança, saneamento e moradia, diz advogado. "Agora, dizem que querem ajudar fazendo os mais pobres pagarem por moradia com um recurso que não têm", diz Vitor Goulart Nery, do Escritório Modelo da PUC-SP, que presta atendimento jurídico à associação de moradores da comunidade há mais de 15 anos.
"Moinho não pode continuar"
"Favela do Moinho não pode continuar", diz secretário. Em entrevista ao UOL sobre o projeto de transferência da sede administrativa do governo ao centro da capital, Guilherme Afif Domingos, chefe da pasta de Projetos Estratégicos, mencionou o plano de "remanejar" a comunidade.
A favela do Moinho é uma zona de altíssimo risco, acho que a favela mais carente de São Paulo. (...) Lá, você tem um alto risco de incêndio e de saúde pública porque a situação é muito precária. A favela do Moinho não pode continuar. Na prática, queremos tirar de lá e botar em habitação regular. Então, nós vamos no bojo deste projeto [de transferência da sede administrativa para o centro] já fazer também o remanejamento da favela do moinho. Secretário Estadual de Projetos Estratégicos, Guilherme Afif Domingos
Especialista em urbanismo diz que plano de remoções no centro deve aumentar a desigualdade. Para Gisele Brito, mestra em planejamento urbano e assessora do Instituto de Referência Negra Peregum, o projeto "busca preparar o centro para exploração econômica e consumo de pessoas de alta renda, com impacto imenso para a população negra que ocupa o centro e outras populações racializadas e pobres".
Ao dizer que vai 'requalificar' a região, o Estado está dizendo que quem está lá hoje não merece estar porque atrapalha o mercado imobiliário e causa má reputação. Mas essas pessoas obviamente não vão desaparecer. Elas só não poderão ficar mais ali. Gisele Brito