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Enganado, soldado africano denuncia tráfico humano para combate na Ucrânia

Soldado russo patrulha um ponto de defesa, capturado do exército ucraniano, fora da cidade de Schastia, na Ucrânia - Yuri Kadobnov/AFP
Soldado russo patrulha um ponto de defesa, capturado do exército ucraniano, fora da cidade de Schastia, na Ucrânia Imagem: Yuri Kadobnov/AFP

François Mazet;

Da RFI

15/01/2025 16h47Atualizada em 15/01/2025 23h38

Um grande número de africanos integrou o Exército russo desde o início da invasão da Ucrânia em fevereiro de 2022. Se alguns se uniram às tropas de Moscou voluntariamente, por meio de empresas privadas de segurança à serviço do Kremlin, outros afirmam terem sido enganados com falsas promessas de trabalho e que se deram conta que iriam combater quando já estavam sendo enviados para o front. Um deles, um camaronês que faz parte desses recrutas, denuncia o que classificou como "tráfico humano".

"Amanhã eles querem nos enviar a uma missão suicida. Eu vou recusar. Provavelmente serei torturado e enviado para a prisão, mas prefiro salvar minha vida", desabafou Samuel* em meados de dezembro, em uma de suas últimas mensagens. Algumas semanas antes, ele já havia sido hospitalizado na enfermaria de sua unidade, em uma região no leste da Rússia, vítima de um ferimento provocado por um ataque de drone.

"Mas aqui, assim que conseguimos andar, nos mandam novamente combater", relatou. "E os africanos estão na linha de frente. Os russos ficam no acampamento, enviando os negros e os estrangeiros para o front. Cada vez que avançamos, pagamos um preço, principalmente com as minas, que nos dizimam", explica.

A história de Samuel com a Rússia começou em maio de 2024. Formado em Ciências e tendo trabalhado em um ministério de Camarões, ele recebeu uma ligação de um de seus amigos, com quem já havia compartilhado sua vontade de deixar o país, e que propunha um trabalho na Rússia. "Ele me perguntou como eu estava, se ainda queria deixar Camarões para viver no exterior". Cansado de um emprego mal remunerado em Yaoundé, Samuel se interessou pela possibilidade.

O amigo não deu muitos detalhes. Disse apenas que o trabalho seria na Rússia e que o salário seria "enorme", conta o camaronês. "Tudo o que eu tinha que fazer era enviar uma foto do meu passaporte. Uma mulher me contatou e disse que, quando eu estivesse em Moscou, trocariam meus documentos por um passaporte russo que me permitiria viajar e trabalhar. Ela explicou que o contrato era para um campo militar e que eu seria como um zelador, com tarefas como limpar e cozinhar", se recorda. "Quando ela me falou sobre o salário e os bônus, meus olhos brilharam", diz.

Samuel juntou o dinheiro que tinha e embarcou, junto com o amigo que fez a proposta, além de outras três pessoas. Ao chegar na Rússia, o camaronês teve uma surpresa: no lugar do kit de limpeza que pensava receber para sua nova função de zelador, recebeu uma metralhadora Kalashnikov. No acampamento onde estava hospedado para algumas semanas de treinamento, encontrou outros recrutas africanos.

Rapidamente Samuel se viu fardado, sem saber exatamente por quem estava lutando ou em que unidade. "Os contratos que nos fizeram assinar foram adulterados. Não temos uma cópia do documento, não recebemos o salário que deveríamos receber. Aparentemente, o comandante russo que nos fez assinar recebe parte do salário de volta", denuncia. Ele entrou em contato com a embaixada de Camarões para contar sua situação, sem sucesso."Eles negam qualquer conhecimento de nossa presença aqui, embora sejamos muitos", diz Samuel, que conheceu outros compatriotas durante os treinamentos, e muitos contavam a mesma história.

Entrevistada pela RFI, a mulher de um dos africanos que Samuel encontrou explica que seu marido também foi para a Rússia atraído pela possibilidade de ganhar dinheiro. A proposta foi feita por uma agência, sem dar detalhes sobre qual seria o seu trabalho. "Ele foi para lá em junho (de 2024), assinou um contrato de um ano e deveria fazer quatro meses de treinamento. No entanto, em julho ele me disse que já estava na Ucrânia, que seria enviado para uma missão de dez dias e me avisaria quando estivesse de volta. Me disse para rezar por ele. Desde então estou sem notícias", relata, desesperada.

Dos que embarcaram junto com Samuel, três já morreram nos combates e um conseguir fugir, após ter sido ferido. O amigo que o convidou para ir para a Rússia está entre os que morreram nos combates. "Ele deixou quatro filhos. Quando a mulher dele me telefona, não sei o que dizer. Era como um irmão", explica.

"Isso é um verdadeiro tráfico de seres humanos que estão encobertando", alerta Samuel, acusando a diplomacia de seu país de cumplicidade. "Nosso governo não dá a mínima para nós e nunca virá nos procurar", se irrita, lembrando que a Índia havia obtido a repatriação de 45 cidadãos que tinham sido vítimas de golpes semelhantes, depois de denunciar publicamente esse tipo de recrutamento. Contatado pela RFI, o Ministério das Relações Exteriores de Camarões ainda não respondeu às nossas solicitações de mais detalhes.

"Os russos não recuam"

Samuel insiste que os soldados estrangeiros, muitos sem nenhuma experiência com armas, são enviados pelas forças russas para avançar no terreno. "Eu nunca vi um ucraniano desde que cheguei aqui. Eles estão escondidos. Atacam apenas enviando drones com bombas enormes ou com minas. É isso que nos mata. Mas somos obrigados a avançar. Nossos chefes nos dizem: 'os russos não recuam nunca'", conta. "E quem recua, é torturado".

O camaronês insiste na diferença de tratamento entre os soldados locais e os estrangeiros. "Os russos têm máquinas para desviar os drones, mas só as usam para eles mesmos. Enquanto nós somos enviados sem nada, para lutar e morrer", desabafa, contando o desespero de alguns camaradas africanos. "Vi alguns atirarem na própria mão só para serem hospitalizados e não serem enviados para o front", relata.

Embora seja difícil verificar os números de perdas humanas no conflito ucraniano, a proporção é claramente desfavorável à Rússia e à sua estratégia de "bucha de canhão". Um relatório recente de um instituto americano estimou que cada quilômetro quadrado conquistado pelos russos custou mais de 50 vidas. O Exército britânico estimou que 45.680 russos morreram até novembro de 2024, um recorde desde o início da invasão.

"Tem corpos para todos os lados. São centenas, apodrecendo. A gente anda sobre os corpos. Eu mesmo me escondi entre cadáveres para evitar os drones. Passamos semanas escondidos, sem comida. Por isso estou denunciando", diz Samuel.

Recrutados na cadeia

A situação do camaronês não é a única. Em maio de 2024, um relatório da inteligência ucraniana, transmitido pela publicação Kyiv Independent mencionou recrutamentos na Somália, Uganda, Burundi e Ruanda. Em setembro do mesmo ano, o veículo publicou um vídeo com os testemunhos de um somali e um serra-leonês prisioneiros do Exército ucraniano. No mesmo mês, um grupo de 14 ganenses testemunhou em um vídeo transmitido pela televisão nacional. Eles alegaram ter sido atraídos e enganados por um de seus compatriotas, um ex-jogador de futebol. Os contratos teriam sido assinados sob coação.

Em outro relato, divulgado pelo jornal Jeune Afrique, um centro-africano que conseguiu fugir para a Letônia afirma ter sido recrutado diretamente em Bangui por mercenários do grupo Wagner enquanto estava sob custódia policial. Um paramilitar teria "comprado" sua libertação em troca da assinatura de um contrato para uma "empresa de segurança".

Em dezembro de 2023, ele voou para a Rússia com outros ex-detentos da África Central, como parte de um grupo de 300 a 400 africanos, de acordo com seu testemunho. As denúncias geraram uma declaração de insatisfação do Ministério Público da República Centro-Africana, alegando que a informação era "desprovida de qualquer plausibilidade ou base legal". O Ministério Público do país declarou ainda que "nunca houve qualquer recrutamento de pessoas sob custódia policial nas unidades de polícia judiciária da República Centro-Africana".

Ação do grupo Wagner

Nem todos os africanos que combatem no front russo foram enganados ao serem recrutados. Alguns aceitaram a missão, recrutados pelo grupo paramilitar Wagner, sabendo que iriam combater, como provam as imagens postadas nas redes sociais por um punhado de soldados africanos atuando na Rússia que ousam se expor. Em março de 2022, o jornalista Philip Obaji contabilizava na imprensa americano a presença de 200 "russos negros", como eram chamados os rebeldes da República Centro-Africana que se aliaram ao Wagner e foram enviados para o território russo. Esse numero não pode ser confirmado.

No entanto, mesmo aqueles que foram espontaneamente não ousam denunciar as condições no campo de batalha, temendo represálias. Os mercenários russos têm o hábito de publicar vídeos mostrando cenas de tortura dos desertores, com imagens que dissuadem qualquer tipo de reclamação.

O próprio Samuel sabe que, se for descoberto, será morto. Mas ele diz que está disposto a correr o risco. "O que eu quero é mobilizar os africanos que estão viajando para a Rússia, para que eles entendam que estão sendo usados. Estão sendo enganados para vir para cá. Quero contar às pessoas o que está acontecendo, para que elas saibam, para que os africanos parem de vir aqui para morrer. Eu perdi entes queridos. Viemos para cá para morrer em uma guerra que não sabemos de onde veio nem por que começou. Gostaria de contar minha parte da história quando ela terminar".

*Nome foi trocado por razões de segurança

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