Tarcísio e Derrite põem em risco a existência da ouvidoria, diz ex-ouvidor
Cláudio Aparecido da Silva, ex-ouvidor das polícias de São Paulo, concluiu seu mandato de dois anos em um momento tenso para a segurança pública no estado. Durante sua gestão, as mortes em ações policiais mais do que dobraram, passando de 331 em 2022 para 676 em 2024.
Como ouvidor, atuou na defesa de familiares de vítimas das operações Escudo e Verão, acompanhou o caso de Ryan da Silva Andrade, 4, morto em ação da Polícia Militar, em Santos, e esteve à frente de discussões como o uso de câmeras corporais por PMs.
Em entrevista ao UOL, Claudinho, como prefere ser chamado, afirmou crer que a ouvidoria terá um perfil mais discreto sob a nova gestão de Mauro Caseri e que a criação de uma "ouvidoria paralela", vinculada à Secretaria da Segurança, pode colocar a existência do órgão em risco. Procurada pela reportagem, a pasta disse que a ouvidoria setorial é "uma exigência da Controladoria Geral do Estado voltada exclusivamente à qualidade e aprimoramento dos serviços" (leia a nota completa da SSP abaixo).
Também disse que não deixará de atuar na área e que planeja escrever três livros —sobre a ouvidoria e as operações na Baixada Santista— e fundar um instituto de estudos.
Gostaria de construir um tripé de participação social de gestores, servidores e conselhos para que a segurança pública no Brasil possa ser reconhecida no mundo como eficiente.
Cláudio Aparecido da Silva, 48, ex-ouvidor das polícias de SP
Balanço é positivo, mas 'ouvidoria não acompanhou modernidade'
O ex-ouvidor afirma que desde a criação da ouvidoria, em 1995, não há um sistema que ajude a digitalizar informações. Diz que, durante as operações Escudo e Verão, ele e a equipe colocaram dinheiro do próprio bolso para viabilizar ações.
Faço balanço positivo. O primeiro desafio foi enfrentar um governo que não sabe lidar com a participação popular, um governo bastante truculento. Lidamos com isso, garantindo a autonomia.
As dificuldades são enormes. O prédio é antigo, insalubre e sem acessibilidade. Não tem ar-condicionado nem internet Wi-Fi. Há monte de gente lá que faz triagem de email porque a SSP não disponibiliza equipe de apoio.
A SSP deu o básico, ou menos que isso, para irmos à Baixada Santista. O pedágio e a alimentação eram por nossa conta. Era uma dificuldade minha e dos policiais que trabalhavam na minha escolta.
Relação com Derrite e Tarcísio
Claudinho relata que teve quatro encontros com Guilherme Derrite, secretário de Segurança. Após uma tentativa de aproximação no primeiro encontro, os demais foram, disse ele, sem resultados. Já com o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) nunca houve conversa.
Percebi uma tentativa de aproximação [de Derrite] no nosso primeiro encontro, em janeiro de 2023. Ele disse ter influenciado a minha nomeação, mas fui nomeado pelo ex-governador Rodrigo Garcia. Falei que assumia o cargo com a intenção de fazer um trabalho conjunto, sem que a ouvidoria se tornasse um órgão de oposição.
Ele disse que curtia Racionais e que quase furou o disco de vinil de tanto ouvir. Não aprendeu nada. Contou que foi vítima de racismo quando tocava cavaquinho num grupo de samba: 'Os negão ficavam me olhando torto'. Pensei: 'Que delícia se o racismo fosse isso'.
Nunca tive a oportunidade de conversar com Tarcísio, só de passagem. Na ocasião do projeto de aumento dos policiais na ativa, ele me cumprimentou. Eu falei que era o ouvidor e ele continuou andando.
Encaminhei ao governador e ao secretário da Segurança vários ofícios relacionados às ameaças que recebi. Nunca houve resposta.
Futuro político de Tarcísio e Derrite
Em relação às ambições políticas do governador e do secretário, o ex-ouvidor disse que, independentemente dos cargos públicos que possam vir a ocupar em 2026, os impactos para as políticas de segurança serão negativos.
Para eles, o céu é o limite no que diz respeito à segurança pública. Vão continuar subindo a régua. Subir a régua para eles não é atuar com técnica policial, com inteligência, respeitando a legalidade. O Estado Democrático de Direito não existe para eles.
Ouvidoria tem ao menos 2 mil casos em aberto
Claudinho diz que enviou diversos ofícios com questionamentos sobre segurança pública ao governo e à Secretaria da Segurança e, segundo ele, só um sobre a Operação Verão foi respondido.
Pedi os boletins de ocorrência de todos os casos de morte decorrente de intervenção policial na Operação Verão, me responderam dizendo que não poderiam mandar porque os casos estavam em segredo de Justiça.
Mandei ofício sugerindo a criação de um grupo de trabalho para prevenção de suicídio entre agentes de segurança. Nunca foi respondido.
A corregedoria da Polícia Civil responde tudo. Já a da PM só responde o que quer. Cheguei a fazer um despacho em 2023 com o corregedor da PM em que levei num ofício que havia 1.200 casos sem resposta. Nesses dois anos, tem mais de 2.000 casos em aberto.
Órgão será mais discreto em 2025, diz ex-ouvidor
O ex-ouvidor afirma acreditar que, após a escolha do advogado Mauro Caseri, 65, como o novo ouvidor pelo governador, órgão terá atuação mais discreta.
Sou um homem negro, da periferia, que tem origem no movimento negro e no hip-hop. Caseri é um homem branco que mora na região central e de classe média.
O compromisso que ele vai ter de enfrentamento dos casos é o mesmo compromisso que eu tenho. Do ponto de vista do perfil, não acredito que vai fazer um trabalho de contraponto com a firmeza e a força que eu faria. Acredito que vá adotar outras estratégias, com o estilo próprio. Acredito que vai atuar com mais discrição, será uma ouvidoria mais discreta.
'Ouvidoria paralela' de Derrite
A criação de uma ouvidoria paralela, por meio de uma resolução publicada pelo secretário Derrite no dia 26 de novembro, é considerada pelo ex-ouvidor "um recado para policiais ficarem livres para cometer irregularidades".
Guarda total coerência com tudo que o secretário e o governo Tarcísio fizeram ao longo de dois anos na segurança. Eles não gostam, não suportam, nem convivem bem com o contraponto. Um pensamento extremamente antidemocrático que não dialoga com os princípios constitucionais brasileiros.
A ouvidoria ficou sozinha com os desmandos da atuação policial. Quando o secretário cria uma ouvidoria por resolução, está emitindo mais uma mensagem para aqueles policiais que atuam fora da regularidade: 'Você vai poder ficar livre, para poder praticar sua ilegalidade'.
'Ouvimos que não tinha nenhuma pessoa morta na operação'
Ex-ouvidor conta que quando recebeu os primeiros relatos da Operação Escudo, em julho de 2023, convocou uma reunião com representantes da sociedade civil, a Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP e da Alesp, a Defensoria Pública e o Ministério Público de São Paulo. Segundo ele, Derrite não atendeu às tentativas de contato.
Eduardo Suplicy (PT) ligou para Derrite no viva-voz e ele não atendeu. Depois, ligou para o secretário-adjunto, Osvaldo Nico, que atendeu. Na conversa, ele fala ao secretário que já tínhamos a informação de sete pessoas mortas na Baixada Santista em dois dias. Nico falou que não tinha nenhuma pessoa morta na operação até aquele momento.
Como explicar uma foto de um rapaz no caixão, com BO da morte dele, e o representante da Secretaria da Segurança Pública falando que não tinha nenhuma pessoa morta.
'São Paulo não vai cumprir determinação do STF'
O ex-ouvidor acredita que o estado não atenderá às determinações do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luís Roberto Barroso, sobre o uso obrigatório de câmeras corporais pelos policiais militares.
No começo, [o governo] vai fazer um esforço para cumprir, mas vai burlar a determinação do STF, como tem feito frequentemente. Essa é uma política que o estado sucateou. É uma política fundamental, mas que São Paulo buscou para desqualificar, e essa desqualificação é estratégica.
Casa grande e senzala na PM
Sem citar números, Tarcísio afirmou que nunca se puniu tanto os agentes de segurança. Mas o ex-ouvidor diz que as eventuais punições atingem, sobretudo, os de baixa patente na PM.
De A a Z nas classes sociais —seja branco, preto, indígena ou amarelo—, quem vive em São Paulo tem o risco de ser vítima da violência policial. Isso porque a gestão Tarcísio desconstruiu o órgão de controle interno da atividade policial, sucateou a corregedoria.
Quando o secretário tenta incidir na corregedoria, está emitindo uma série de sinais e senhas para a tropa, está dizendo para a tropa que a impunidade vai prosperar.
O governador pune os coitados das praças. Há uma 'casa grande e uma senzala'' na polícia. A maioria é massacrada por uma guerra de informações passadas por secretário, comandante-geral e deputados da bancada da bala, que incentivam a truculência. Eles ficam sozinhos nos bancos dos réus. São usados como a gordura que pode ser cortada.
O que diz a SSP
Procurada pelo UOL para comentar as declarações de Claudinho, a Secretaria de Segurança Pública enviou uma nota:
A atual gestão da SSP garante todos os meios e condições necessários à operação da Ouvidoria das Polícias do Estado de São Paulo, bem como a atuação autônoma e independente do ouvidor. Todas as nomeações solicitadas pelo órgão para cargos de comissão foram realizadas, assim como determina a legislação.
Em relação à ouvidoria setorial, trata-se de uma exigência da Controladoria Geral do Estado (CGE) voltada exclusivamente à qualidade e aprimoramento dos serviços prestados pela secretaria. Os casos de violações policiais continuarão sendo de competência da Ouvidoria das Polícias, sem nenhum impacto ou limitação na sua atuação.
A SSP não compactua com excessos e pune com rigor todos aqueles que infringem a lei. Desde janeiro de 2023, mais de 320 policiais foram demitidos e/ou expulsos e 433 presos. Com relação à Operação Escudo, todas as ocorrências de morte durante a ação são rigorosamente investigadas pelas polícias Civil (Deic de Santos) e Militar, com o acompanhamento das respectivas corregedorias, do Ministério Público e do Poder Judiciário. Todo o conjunto probatório apurado no curso das investigações, incluindo as imagens das câmeras corporais, foi compartilhado com esses órgãos e o trabalho policial segue em segredo de Justiça.