Construtora dá calote, e donos de casas há 30 anos recebem ordem de despejo
Ao ver um trator derrubar o sobrado de um vizinho por inadimplência na década de 1990, a aposentada Eldeci Dias, 70, tornou os boletos do seu terreno recém-adquirido uma prioridade. Trabalhava todos os dias da semana e fazia bicos para não ter o mesmo destino. Nunca atrasou uma conta. Mesmo assim, mais de trinta anos após quitar o pagamento da casa, recebeu aviso de despejo. O motivo? Uma dívida que nem era dela.
O aviso de penhora por uma dívida da loteadora Developments do Brasil Comercial Ltda com a Prefeitura de Guarulhos foi recebido por Eldeci e pelo menos outros 10 proprietários de casas na rua Eliane Mendes Ferreira, no bairro de Jardim Santa Paula, na periferia da cidade, em 2023. Com recibos e contratos em mãos, eles não imaginavam que 30 terrenos da rua tinham sido caucionados pela companhia para aprovar as construções de outros loteamentos. A construtora foi multada por danos sociais e ambientais em um processo de 2013 e, após não pagar a conta de R$ 2,9 milhões, veio o confisco.
Juntos, os moradores procuraram uma advogada e acionaram a Justiça. A maioria deles comprou os lotes nos anos 1990 e parcelou o pagamento em 120 vezes. Quase todos permitiram que filhos e netos construíssem outras casas dentro da propriedade. A estimativa da defesa é de que mais de 50 pessoas vivam nas casas, a maioria delas são crianças e idosos com pouca instrução.
"Querem tomar o que a gente pagou caro", diz morador. O aposentado Valdívio Cerqueira comprou um lote inteiro da construtora em 1992, quando a área não tinha nem asfalto e nem luz. Para ele, a casa própria foi a maior vitória da vida e ter a prestação em dia era uma questão de honra.
O mecânico Antônio Silva, 56, também lembra de quando tudo na região era escasso. Ele conta que a área era um brejo que alagava constantemente. Para garantir que chegasse com os sapatos limpos no trabalho, ele colocava sacos de lixo no pé.
Comprei em 1994 e quitei em 1996, quando minha esposa estava grávida, hoje ela é falecida. Passei o maior sufoco, nós passamos até fome para construir a casa.
Antônio Silva, mecânico, ao UOL
Para nós que somos pobres, a maior vitória é quando conseguimos comprar alguma coisa, quando conseguimos construir uma casa e trazer a nossa família para dentro. Para um homem, um pai de família, essa é a maior vitória, porque dinheiro para nós não é tudo. Para nós, o 'tudo' é um local de moradia, um lugar pra você esconder do sol, esconder da chuva.
Valdívio Cerqueira, aposentado, ao UOL
O compromisso com as parcelas e o sacrifício para conquistar a casa própria também marcou a vida da vizinha de Antônio, a dona de casa Meire dos Santos. "O meu esposo ia a pé com o sapato furado para pagar a prestação no centro de Guarulhos, para deixar um futuro para a família. Hoje ele é falecido e esse foi o bem que ele deixou", lembra.
A costureira Gerci Alves, 51, que mora com o marido, os filhos e o pai de 94 anos, conta que já não dorme bem e tem medo quando um carro da prefeitura passa pela rua. Hoje, tem um espaço para fazer reparos de roupa dentro da própria casa. Para ela, perder o teto também significa perder o emprego e o suporte que dá ao pai, diabético, hipertenso e com dificuldades de locomoção.
Se a gente não tem direito, por que a prefeitura não falou isso antes? Deixou esse pessoal todinho aqui, trabalhando todo dia de sol a sol. Meu marido levanta às duas horas da manhã para ir trabalhar como motorista em uma empresa de ônibus. Nós lutamos tanto. Sofremos muito. E agora a prefeitura quer tomar de nós. Por quê?
Gerci Alves, costureira, ao UOL
Além dos contratos de compra, ao menos três moradores têm em mãos autorizações e protocolos em nome da Development que "validam" as escrituras das próprias casas. Um deles data de 2003, quando a maioria dos lotes foi quitada. O papel, porém, não serve como a escritura da casa. "Essa autorização não tem o poder de regularizar os terrenos, nem de apagar as dívidas garantidas por eles. Serviu apenas para manter as aparências com os compradores vulneráveis", explica o advogado Vinícius Zamboneti ao UOL.
Em primeira instância, a Justiça entendeu que os moradores não teriam direito às propriedades porque não as regularizaram em tempo hábil, o que seria a obrigação deles. A defesa alega que tanto a construtora quanto o município criaram uma "inquestionável situação de aparência de legitimidade" na compra e nos anos de cobranças de impostos. A advogada Tarciana Durães também afirma que os moradores, que viviam em situação de vulnerabilidade, não podiam imaginar que seus terrenos tivessem qualquer irregularidade.
Em 1985, as pessoas acreditavam na força de um contrato, principalmente quando a assinatura era reconhecida firma em cartório.
Tarciana Durães, ao UOL
Defesa também sugeriu que a prefeitura fosse paga com outros lotes da mesma construtora, que estão desocupados. Na peça feita para recorrer à decisão da 1ª Vara da Fazenda Pública de Guarulhos, a advogada alega que 16 lotes vazios na mesma região têm valor avaliado em R$ 4,7 milhões, valor que ultrapassa a dívida que a empresa tem com o município.
A advogada também pontua que a prefeitura foi omissa por não monitorar as obras da Developments do Brasil de acordo com a Lei de Parcelamento do Solo, que dá prazo de quatro anos, prorrogáveis por mais quatro, para analisar as estruturas do loteamento no local.
A prefeitura não fez nada disso. Ela 'ficou dormindo', deixou acontecer e agora quer que esses terceiros, de boa fé, pagam. O Poder Judiciário também não entrou nesse mérito. O poder judiciário jogou a responsabilidade nessas pessoas vulneráveis.
Tarciana Durães, ao UOL
Questão é da construtora com os moradores, diz prefeitura
A Prefeitura de Guarulhos informou que não foi citada no processo de despejo das famílias. "Trata-se de uma ação do município contra a empresa Developments, e não contra os moradores. Basta que haja o pagamento por parte da empresa que a questão será solucionada. A questão dos moradores é contra a loteadora, e não contra o município", afirmou o órgão por e-mail.
O UOL buscou a Developments do Brasil Comercial Ltda por ligação e e-mail cadastrados no CNPJ, mas não obteve retorno. O advogado e o escritório de advocacia que fez a defesa da companhia em processos de 2023 também foi procurado por e-mail, mensagem e ligação, sem qualquer retorno. Empresas que já foram mediadoras de contratos da Development informaram que a companhia já não funciona no endereço em que operava nos anos 2000.
Imobiliária explicou que não tem ligação com a construtora. Por telefone, a imobiliária Continental explicou que só mediava o contato dos compradores com a Developments, que é quem responde pelos processos. A empresa explicou que não tem contato com a empresa "há muito tempo". Apesar de ser citado por moradores, o nome da Continental não aparece no processo ou na sentença judicial.
Tribunal de Justiça não vai se pronunciar sobre o assunto. Ao UOL, o órgão informou que "os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento" e que, por lei, magistrados não podem se manifestar sobre processos em andamento.