Pai de brasileiro traficado: 'Lá não tem lei?'; Brasil não pode resgatar
Depois que dois brasileiros se tornaram vítimas de tráfico humano em Mianmar, o Ministério das Relações Exteriores informou que não cabe ao governo brasileiro realizar o resgate dos jovens, apenas cobrar ações das autoridades locais.
O que aconteceu
Itamaraty afirma que operações de busca e resgate cabem às polícias locais, não à embaixada brasileira. A informação foi passada ao UOL por uma assessora da pasta por telefone. Já em nota, o ministério afirma que, "ao longo das últimas semanas, foram realizadas diversas gestões junto ao governo de Mianmar, com vistas a localizar e resgatar o brasileiro —operação que compete às autoridades policiais locais".
Embaixadas são proibidas de "investigar, por conta própria, crimes ou desaparecimentos", divulga pasta. Segundo o portal oficial do Ministério das Relações Exteriores, as competências das embaixadas e das Repartições Consulares no exterior "são definidas por tratados internacionais, pela lei brasileira e pela lei local". Tais regras também impedem os órgãos nacionais de "interferir para libertar cidadãos brasileiros detidos" em outros países.
Familiares de vítimas dizem que autoridades brasileiras dão apenas retornos protocolares e vagos. "Só ficam nos mandando nota dizendo que estão em contato com as autoridades. Será então que Mianmar não tem lei?!", questiona Antônio Carlos Ferreira, pai de Phelipe de Moura Ferreira, de 26 anos, traficado ao país asiático no fim de novembro.
O governo não faz nada, só fica mandando essas notinhas fajutas. (...) Estou mandando informações todos os dias para a embaixada brasileira, para o Itamaraty, até para a Polícia Federal, e ninguém me responde. Eu me sinto muito impotente e eles parecem surdos e mudos. Antônio Carlos Ferreira, pai de Phelipe
Casos de brasileiros não são isolados
Relatório da ONU de 2023 estimou que, apenas em Mianmar, cerca de 120 mil pessoas são mantidas em condições análogas à escravidão após terem sido traficadas. Outras centenas de milhares se encontram em situação semelhante em países do sul asiático como Camboja, Laos, Filipinas e Tailândia.
Vítimas enfrentam série de "abusos" e "graves violações", diz o documento. "Muitas delas foram submetidas a tortura e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, detenções arbitrárias, violência sexual, trabalho forçado e outros abusos dos direitos humanos", informou a ONU (Organização das Nações Unidas) em comunicado divulgado em agosto do ano passado.
Ministério das Relações Exteriores também emitiu alerta para casos de brasileiros traficados para trabalhar em "atividades ilícitas". O comunicado, atualizado no fim de outubro, informa que a embaixada do Brasil em Yangon, antiga capital de Mianmar, "vem sendo notificada, desde setembro de 2022, de casos de aliciamento de brasileiros para trabalho em condições análogas à escravidão", ligados a golpes financeiros virtuais e crimes cibernéticos.
"Trata-se de esquema no qual empresas, supostamente do setor financeiro, oferecem vagas de emprego em operações alegadamente situadas na Tailândia", divulgou o Itamaraty. Na prática, segue o alerta, os brasileiros vítimas do esquema "são transportados para Mianmar, onde têm seus passaportes retidos e são submetidos a longas jornadas de trabalho, privação parcial da liberdade de movimento e possíveis abusos físicos".
Contexto político do país dificulta resgates
Mianmar vive sob ditadura militar há quase quatro anos. Golpe ocorreu em fevereiro de 2021, encerrando um breve período de reforma democrática e voltando novamente as armas militares contra civis. Nesse contexto, grande parte do país e uma oposição armada se voltaram contra os militares, enquanto organizações internacionais passaram a condenar o governo do país por graves violações de direitos humanos.
Uma delas foi a OIT (Organização Internacional do Trabalho). Em 2023, o órgão concluiu em uma Comissão de Inquérito sobre o país que o regime militar em Mianmar "continua a exigir diferentes tipos de trabalho forçado no contexto de conflitos armados" e que "falta aplicação adequada da proibição do trabalho forçado ou obrigatório" no país.
Diante do parecer, organização listou recomendações ao país. Entre as medidas propostas ao governo asiático estão " restaurar totalmente a proteção das liberdades civis básicas suspensas desde o golpe de Estado" e "pôr fim à imposição de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório por parte do exército e das forças associadas". O regime de Mianmar, porém, parece ignorar as propostas e segue sendo palco de violações contra civis e estrangeiros levados ilegalmente ao país.
Relembre casos
Após Luckas Viana dos Santos, 31, ser traficado para Mianmar no início de outubro, Phelipe de Moura Ferreira, 26, foi levado ao mesmo local no fim de novembro. Os dois são paulistanos e moravam em outros países, quando receberam uma suposta proposta promissora de emprego na área de tecnologia para trabalhar na Tailândia.
Brasileiro mais jovem foi dado como desaparecido até entrar em contato com familiares em dezembro. Há cerca de uma semana, ele passou a se comunicar escondido com o pai por uma rede social. "Estávamos sem notícias do Phelipe, até ele conseguir mandar mensagem e descobrirmos que ele estava no mesmo lugar que o Luckas", conta Antônio Carlos Ferreira.
Brasileiros foram traficados para "aplicar golpes" em estrangeiros por aplicativos de mensagem, segundo familiares. "Meu primo contou ao amigo que era forçado a dar golpes em pessoas de outros países pelo Telegram", conta Ana Paula, prima de Luckas. O pai de Phelipe confirmou a informação: "não sei qual tipo de golpe é, só sei que é pela internet", diz.
Luckas está sendo punido, "sem conseguir andar direito, cheio de hematomas", contou Phelipe a familiares do outro brasileiro. Ao UOL, Ana Paula diz que recebeu prints de mensagens do jovem dizendo que seu primo estava sendo torturado por ter alguns de seus pedidos de ajuda descobertos pelos "chefes", que eles dizem ser chineses.
Pai de Phelipe diz que filho pensa em tirar a própria vida e tem recebido ameaças de morte. "Ele está me deixando preocupado, porque já falou duas vezes que vai se matar por não estar aguentando mais, [diz] que estão torturando ele lá, e ameaçando ele e o Luckas de morte", conta Antônio.
"Eles vão tirar nossos órgãos. Como ficar calmo assim?", escreveu Phelipe ao pai nos últimos dias. Enquanto Antônio diz se sentir "impotente" diante da falta de informações sobre o que está sendo feito pelo filho por parte das autoridades brasileiras e locais, o jovem implora para que o resgate chegue logo.