A tensão no mercado cambial é a ponta de um iceberg que reflete um feroz conflito distributivo — a disputa entre pobres e ricos pelos recursos públicos no Brasil. Esta briga, por sua vez, fica evidente na disputa de narrativas sobre a "crise fiscal" (assim mesmo, entre aspas), ou seja, o desequilíbrio entre receitas e despesas públicas.
Por partes:
Dólar
Está certo o futuro presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, ao afirmar que o mercado cambial, apesar de pressionado, não está sofrendo ataque especulativo.
Diferente da narrativa de políticos do PT e de gente mais à esquerda no governo Lula, ataque especulativo só ocorre quando o governo e o Banco Central estão prestes a jogar a toalha porque não dispõem mais de reservas internacionais para enfrentar maciças ondas de compras de dólares.
Quando há reservas em boa quantidade, não há ataque especulativo porque os investidores -- e os especuladores -- não queimam dinheiro, e tal movimento, todos sabem, terminaria em perda de dinheiro.
Só especula quem compra dólar a um dado preço hoje e acha que, na frente, vai vender mais caro, ganhando a diferença. Em regime de câmbio flutuante, em que as cotações se ajustam quase automaticamente, ataques especulativos só mesmo em situações muito excepcionais.
Além disso, se o BC tem bala, sob a forma de reservas cambiais, para segurar o movimento de alta nas cotações, as chances de ganho com esse tipo de especulação não são das melhores.
O BC tem operado com seu arsenal de reservas nos últimos dias, com crescente uso de balas mais fortes. Nesta quinta-feira (19), por exemplo, despejou R$ 5 bilhões num único leilão, volume muito alto em comparação com outras intervenções diárias, e, pelo menos temporariamente, derrubou as cotações.
Detalhe: mesmo considerando que tudo o que o BC jogou na praça, nos últimos dias, algo como R$ 20 bilhões, foi tirado direto das reservas, o volume aplicado não passou ainda de 5,5% do total. É claro que essa ação não pode continuar indefinidamente, mas há espaço para mais intervenções e outras formas de atuar sem queimar reservas diretamente.
A pressão sobre o mercado cambial, então, não é especulativa. Tem mais a ver, como informou, repetidamente, o presidente de saída do BC, Roberto Campos Neto, em entrevista coletiva à imprensa também nesta quinta-feira, com aumento "acima da média", para um período já de remessas em maior volume, no fim do ano, de dividendos para fora.
O que Campos Neto não disse, talvez para não caracterizar uma crítica ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e ao governo em geral, é que parte dessas remessas acima da média — talvez a maior parte delas — tem origem em "realocações de portfólio"
Como o governo anunciou que pretende enviar ao Congresso medida de tributação mínima de rendas altas, acima de R$ 50 mil mensais (R$ 600 mil no ano), mas não informou nada sobre o que será taxado e em quanto, acabou deflagrando um movimento preventivo de reaplicação de recursos, para fugir da futura tributação.
O caminho natural dessa realocação é resgatar a aplicação, converter os recursos em dólar e remeter para contas ou fundos no exterior. Há indicações, certamente conhecidas pelo BC, de que está ocorrendo uma gigantesca realocação de recursos, pressionando as cotações do dólar.
Fiscal
Existem desequilíbrios fiscais, mas classificar a situação atual das contas públicas de "crise fiscal" é um exagero. Os números comprovam que não tem havido piora, ao contrário, há melhora, embora pequena e insuficiente para reduzir a dívida pública no curto prazo.
No começo de 2024, por exemplo, os analistas do mercado financeiro esperavam déficit fiscal de 0,8% do PIB (Produto Interno Bruto) e uma dívida pública líquida (em que são descontados os carregamentos de juros das reservas internacionais) de 64,25% do PIB. As previsões para o crescimento do PIB eram de 1,6%. Com essas projeções, não havia esse estresse todo com a "crise fiscal".
Agora no fim do ano, os analistas esperam uma dívida líquida de 63% do PIB e déficit primário de 0,5%, PIB crescendo 3,5%, com desemprego em níveis mínimos e renda sustentada. As previsões de inflação, de fato, pioraram: eram de 3,9% em 5 de janeiro e agora vão a 4,9%. Mas a distância do teto de tolerância do sistema de metas, não merece a acusação de descontrole inflacionário.
Os indicadores econômicos estão melhores, ou dentro de margens toleráveis, mas o que não era assim tão "crítico" no começo do ano, tornou-se agora "insustentável". Concretamente, não faz o menor sentido.
Sim, a dívida pública bruta está crescendo, o BC estima que chegará a pouco menos de 80% do PIB no fim do ano. Parte é déficit primário, mas o que a tem impulsionado mais são os juros cada vez mais altos que o Tesouro Nacional está sendo obrigado a oferecer ao mercado, para rolar seus compromissos, depois da instalação da "crise". Ainda assim, inclusive na comparação com outros países, a dívida pública brasileira não está descontrolada.
Mesmo baixando a bola, como se deveria baixar, não se pode desconsiderar os problemas fiscais. A estrutura de gastos públicos é engessada demais e do lado das receitas, historicamente, há isenções, desonerações e abatimentos em excesso. Muitas dessas isenções e desonerações não resultam em ganhos nem para a economia, nem para o bem-estar social.
O governo também não conta com o Congresso para tirar calor da fervura fiscal. Ao contrário, além dos orçamentos secretos, o Congresso, hostil ao governo Lula e reacionário além do razoável, é uma usina de "pautas-bomba" fiscais, aumentando gastos e reduzindo receitas.
Resumo da encrenca
O presidente Lula foi eleito com a promessa de "incluir o pobre no Orçamento e o rico no Imposto de Renda". Tratava-se de uma proposta ousada de interferir no conflito distributivo em favor do lado politicamente mais fraco.
Em alguns casos, têm sido desastradas as tentativas de cumprir o prometido na campanha eleitoral. Mas, mesmo que tudo fosse feito sem erros, inclusive de comunicação, contando com um Congresso colaborativo, as dificuldades de implementar esse programa já seriam enormes.
Observe-se, por exemplo, o esforço da "Faria Lima", reproduzidos com insistência na mídia, de justamente retirar o pobre do Orçamento, via cortes de gastos "na carne", sustentada por uma narrativa não baseada em dados concretos, de "crise fiscal". Cortar "na carne" significa atingir gastos sociais, que representam 80% do total de gastos públicos.
A "crise fiscal" se combina com a crise cambial, na medida em que a pressão sobre o dólar reflete um outro lado desse conflito distributivo. A remessa "anormal" de dividendos para o exterior, que está na base da explosão das cotações, é uma manobra preventiva para evitar a inclusão do rico no IR.