[Coluna] Caso Pelicot: Vítima de estupro é mais exposta que agressor
[Coluna] Caso Pelicot: Vítima de estupro é mais exposta que agressor - Desde que o caso se tornou público, apenas a imagem da corajosa Gisèle é exposta. O agressor continua praticamente invisível, algo comum em casos de violência sexual.Você já deve conhecer o rosto de Gisèle Pelicot. A imagem da mulher de cabelo ruivo, franja e expressão triste está em todo canto. A francesa de 72 anos, que foi dopada e estuprada por seu ex-marido e por estranhos convidados por ele (que ainda filmou os horrores), virou um símbolo da luta pelos direitos das mulheres e contra a violência sexual em todo mundo.
Gisèle é uma heroína que merece todas as homenagens e que alcançou uma vitória nesta quinta-feira (19/12): depois de três meses de julgamento, seu ex-marido e algoz, Dominique, foi condenado a 20 anos de prisão (a pena máxima para esse crime na França). Ele também foi considerado culpado por gravar a própria filha e a nora nuas.
Dos 51 réus que foram julgados, 47 foram considerados culpados de estupro. Alguns deles, mesmo assim, foram condenados a penas leves, que vão dos cinco aos três anos (dois deles com direito a liberdade condicional). Ou seja: em poucos anos, eles vão poder tocar as suas vidas como se nada tivesse acontecido.
Dominique, um aposentado de 72 anos, receber a sentença máxima de 20 anos é uma boa notícia. Mas, de certa forma, ele sempre foi poupado. Isso porque apesar de a corajosa Gisèle ter decidido tornar o caso público para "que a vergonha mude de lado", apenas a imagem dela é exposta. O agressor continua praticamente invisível. Se você procurar artigos e reportagens sobre o tema, verá que a imagem de Dominique praticamente não aparece.
Isso não é novidade em casos de violência de gênero. É comum que as vítimas sejam mais expostas que seus agressores, que ficam confortavelmente nos bastidores.
Ou seja, até quando são agredidas da pior forma, são as mulheres que precisam se expor para denunciar os crimes dos quais foram vítimas. Em muitos casos, elas são expostas mesmo quando não querem ou não podem mais se defender.
No caso de Gisèle, ela decidiu conscientemente mostrar o rosto e permitiu que todos os horrores a que foi submetida fossem contados e exibidos em um tribunal para que houvesse justiça. Admirável.
Mas não podemos permitir que o agressor, Dominique Pelicot, não fique marcado. Foi ele que cometeu os crimes, certo? Isso precisa ficar claro e não pode ser esquecido. Seu rosto, como o criminoso terrível que ele é, também deveria estar em capas de revistas e ilustrando reportagens sobre o caso.
Qualquer pessoa que tenha um pouco de conhecimento sobre violência de gênero sabe que os agressores precisam ser expostos e que as vítimas devem ser poupadas. Mas ainda é comum que, por exemplo, em notícias de casos de feminicídio, a imagem da vítima sirva para ilustrar a reportagem. O suspeito ou condenado em geral não tem seu rosto exibido. Quando isso ocorre, é numa foto secundária.
Nós, jornalistas, temos culpa nisso. Muitas vezes reproduzimos esse comportamento misógino de forma irresponsável, quando agimos por hábito ou movidos por ímpetos meramente comerciais.
No caso de Gisèle e outras heroínas das causas femininas, seu rosto tem mesmo que estar em paredes, cartazes e muros. Precisamos lembrar de sua força e também do que ela foi vítima, para que isso não se repita.
Mas acredito que Dominique e os outros estupradores de Gisèle, sujeitos que eram considerados "bons cidadãos" e que são homens comuns, que poderiam ser vizinhos de qualquer um de nós (a lista inclui um padeiro, um jardineiro e um bombeiro), também deveriam ter seus rostos estampados em revistas e muros. Precisamos lembrar que até o cidadão comum que mora ao lado pode ser o estuprador. E os homens precisam aprender (mesmo que à força) que violência contra a mulher é um crime sério, do qual você não pode se livrar, e que ficará marcado para sempre.
A força de Gisèle nunca pode ser esquecida. Mas a crueldade do seu marido e dos outros cidadãos comuns que a estupraram também não.
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.Autor: Nina Lemos