Falta-nos a coragem de Mário Covas para um choque fiscal
O Banco Central decidiu, por unanimidade, aumentar os juros básicos. A meta Selic passou de 11,25% ao ano para 12,25% ao ano. Além disso, o Copom (Comitê de Política Monetária) já indicou que haverá mais duas altas da mesma magnitude nas próximas reuniões, as primeiras sob o comando do economista Gabriel Galipolo.
A cada ponto percentual de aumento na Selic, contratam-se R$ 48 bilhões em gastos financeiros, em razão do aumento na remuneração dos títulos públicos, sobretudo pela forte indexação da dívida brasileira à própria Selic. Essa cifra representa mais de duas vezes o efeito fiscal anualizado do pacote recém-anunciado.
Quando juntamos os títulos públicos (Letras Financeiras do Tesouro - LFT) vinculados à Selic com as operações compromissadas realizadas pelo Banco Central (operações de curtíssimo prazo para gerenciar a liquidez no sistema financeiro), chegamos à bagatela de R$ 4,8 trilhões, numa dívida bruta total de R$ 9 trilhões. Isto é, um ponto percentual a mais na Selic leva a um gasto automático de R$ 48 bilhões, a título de juros pagos aos detentores dos papéis públicos remunerados à Selic.
E isso sem contar os efeitos da alta dos juros de curto prazo sobre toda a curva, como dizemos no mercado. Basta ver os juros reais demandados pelo mercado nos leilões do Tesouro para títulos mais longos.
Fato é que estamos tratando, aqui, de mais de 50% da dívida pública total em papéis públicos vinculados à Selic. Conforme dados do Banco Central, a parcela da dívida bruta atrelada à Selic equivalia a 46,7%, em outubro de 2021, tendo passado a 47% e a 49,3% em 2022 e 2023, respectivamente.
Essa estratégia do Tesouro e do Banco Central de gerenciar a dívida pública e a liquidez do sistema monetário com instrumentos vinculados aos juros de curto prazo cobra o seu preço, sobretudo em momento de maior desconfiança e de pressões inflacionárias e dólar caro. Tanto é assim que o boletim Focus - aquela que congrega as projeções de mercado - indicou, nesta manhã, aumento das estimativas de IPCA para todos os anos até 2027.
A economia está febril e há urgência nas providências a serem tomadas.
Não adianta o Banco Central impor mais custos à sociedade e ao erário com novas subidas na Selic e sair vendendo dólares como se não houvesse amanhã. Vai fazer água com essa estratégia, se não houver a devida coordenação com o governo no que se refere à política fiscal.
Se o governo não fizer a lição de casa e não mudar sua terapia atual, de tratamento homeopático do gasto público, para uma alopatia efetiva, com boas doses de antibiótico, no fim do processo de alta de juros só vamos colher frutos ruins. É isso que deseja o presidente Luiz Inácio Lula da Silva? Duvido muito que ele tenha desistido de entregar um país com crescimento elevado e desemprego baixo até o fim de seu mandato, em 2026.
É hora de frear o gasto público. O pacote fiscal em tramitação no Congresso Nacional é um bom começo, mas é insuficiente. É necessário aprová-lo com celeridade e apresentar novas medidas. Não adianta chorar o leite derramado, mas o governo abdicou de apresentar um programa de ajuste fiscal, no início do mandato do presidente Lula. É verdade que o ministro Fernando Haddad tomou medidas importantes do lado das receitas, a exemplo da tributação dos fundos fechados, dos investimentos no exterior, da nova lei das transações tributárias, da volta do voto de qualidade no Carf (Conselho Administrativo Recursos Fiscais) e do fim do subsídio federal baseado em incentivos fiscais do ICMS.
Entretanto, o governo deixou de lado a tarefa fundamental de controlar as despesas, por pura ideologia, como se a ideia de gastar mais fosse sempre a estratégia ótima para melhorar a vida da população. Não é. Agora, o ajuste acabará custando mais caro. Já está, na verdade, pelo canal dos juros e da dívida. Ou vamos colher outro fruto que não a desaceleração da atividade econômica?
A dinâmica da dívida pública depende de quatro variáveis fundamentais: os juros reais, o crescimento econômico real, o nível de endividamento e o resultado primário (déficit ou superávit), aquele que não inclui o gasto com juros. Com uma Selic já contratada em 14,25% ao ano, pelo menos, supondo uma inflação esperada de 4%, os juros reais são calculados em 9,9%!
Isso significa que, se o crescimento econômico real ficar, na média dos próximos 15 meses, em algo como 2,5%, seria preciso produzir um superávit primário de mais de 5,5% do PIB para estabilizar uma dívida que alcançasse, por exemplo, 80% do PIB, nível do qual já estamos nos aproximando; e rapidamente.
O exercício acima mostra que não há meios de a economia brasileira e as contas públicas sobreviverem a juros tão elevados por muito tempo. O remédio que se está receitando — e o Banco Central, de fato, não tem muita saída nesse aspecto — é errado. Está faltando chamar a junta médica para decidir sobre o medicamento capaz de alterar essa situação com brevidade: o ajuste fiscal.
Não se está dizendo, aqui, para reduzir gastos sociais como se não houvesse amanhã. A proposta é conter os gastos tributários (por meio de um corte geral e irrestrito), reindexar despesas sociais (que continuariam a crescer, vale dizer), mudar as regras constitucionais de vinculação de gastos à receita (exemplo: saúde), promover ajustes nos supersalários, acabar com os abatimentos de despesas médicas no Imposto de Renda das Pessoas Físicas, reduzir os gastos tributários com a Zona Franca de Manaus, o Simples Nacional, os Regimes Especiais, as Filantrópicas e tantos outros.
Todos têm de dar sua cota de colaboração. É grave a situação fiscal e, na toada em que estamos, a dívida não vai estacionar tão cedo, para não dizer nunca mais.
"Ah, mas os mercados são cruéis e autointeressados, pois vivem a pressionar os juros e o câmbio e, com isso, colocam o governo nas cordas", poderiam argumentar os leitores atentos.
Em que pese o fato de os mercados, de fato, serem autointeressados e buscarem ampliar seus resultados, não é essa a razão da nossa desgraça. O mercado só será enquadrado pelo governo, quando este promover um choque de credibilidade. Na verdade, o autointeresse do mercado é o que pode resolver a nossa situação, se o governo guiá-lo para um futuro menos oblíquo, menos nebuloso, mais previsível.
A esse respeito, é salutar a lembrança do discurso do então senador Mário Covas, denominado "choque de capitalismo". A fala do saudoso Mário Covas é de junho de 1989, quando lançava sua candidatura à Presidência da República pelo recém-nascido PSDB.
Covas não foi presidente, infelizmente, mas, anos mais tarde, em 1995, promoveu o maior ajuste fiscal de que se tem notícia, quando governou o estado de São Paulo, providenciando a reorganização das contas públicas estaduais de maneira a reerguer as finanças e a economia de São Paulo. Nunca mais os paulistas enfrentariam problemas nessa seara. Mais do que isso, assistiram ao aumento brutal dos investimentos e dos gastos sociais. Covas foi reeleito, vale dizer, em 1998.
Dizia ele:
"Mas o Brasil não precisa apenas de um choque fiscal. Precisa, também de um choque de capitalismo, um choque de livre iniciativa, sujeita a riscos e não apenas a prêmios.
Zelaremos pela moeda nacional que, em face de sua degradação, já foi substituída duas vezes na Nova República e caminha para a terceira mudança. A queda da inflação trará a melhoria da arrecadação de impostos. Não é preciso elevar as alíquotas, mas, sim, combater a sonegação, eliminar favores e privilégios tributários. Há hoje setores que sequer pagam impostos. Agiremos com firmeza.
O Estado brasileiro cresceu demasiadamente como produtor direto de bens, mas atrofiou-se nas funções típicas de governo. (...) Não podemos permitir que o futuro seja a grande vítima do presente." (Discurso "Choque de capitalismo", 1989. Senado Federal. Fonte: https://tucano.org.br/choque-do-capitalismo/).
Pois é, caros leitores, o que nos falta é resgatar o espírito público, com seriedade. Cabe às lideranças instituídas o abandono do populismo covarde e a adoção de medidas duras e necessárias. Sem isso, o destino será como o de antes, o do alerta de Covas, há 35 anos. E digo eu: um futuro vítima de um presente da lassidão fiscal e da falta de compromisso com o desenvolvimento econômico e social intertemporal.