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Sempre ouço 'minha intenção nunca foi ofender', diz promotora sobre racismo

Promotora de justiça Lívia Sant"Anna Vaz - Arquivo/Webster Santana
Promotora de justiça Lívia Sant'Anna Vaz Imagem: Arquivo/Webster Santana
do UOL

Do UOL, em São Paulo

15/12/2024 12h00

Apontada como uma das 100 afrodescendentes mais influentes do mundo pelo Mipad (Mais Influentes de Descendência Africana do inglês Most Influential People of African Descent), a promotora de justiça Lívia Sant'Anna Vaz acredita que o Projeto de Lei 254/22, que tramita na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara, pode desencorajar denúncias de racismo.

O texto, proposto pela deputada Bia Kicis (PL-DF) e outros parlamentares bolsonaristas, tenta incluir na Lei Caó (7.716) — que define o que é racismo —- o crime de "falsa acusação de nazismo". Se aprovado, acusar alguém falsamente de ser nazista será crime punível com reclusão de dois a cinco anos e multa.

O projeto primeiro será analisado pela comissão e depois pelo Plenário. A relatora é a deputada federal Julia Zanatta (PL-SC), que é favorável à aprovação — ela, que já foi acusada de nazismo, afirma que a mudança na lei é proporcional à falsa acusação, que merece "resposta penal proporcional à sua gravidade".

Mudança na lei pode desencorajar denúncias

Lívia Sant'Anna Vaz afirma que a tentativa de modificação de uma legislação que foi uma conquista do movimento negro pode prejudicar justamente quem denuncia o racismo.

Em dez anos, eu nunca tive um caso em que um réu diz: 'sim, eu sou racista' ou 'eu tive a intenção de discriminar'. É sempre 'a minha intenção nunca foi ofender ninguém'. A gente tem um poder judiciário que não responsabiliza ninguém. Lívia Sant'Anna Vaz, autora dos livros "A justiça é uma mulher negra", "Cotas Raciais" e "Abayomi: O reluzir dos encontros preciosos"

O discurso de ódio, que tem fundamentado várias discriminações, é apontado como 'exercício da liberdade de expressão' — liberdade de expressão essa que não é um direito absoluto, mas um direito que precisa ser harmonizado com os outros. O que a gente precisa é usar a proteção constitucional, os direitos fundamentais, os argumentos e valores democráticos que estão na Constituição para defendê-la efetivamente, não com distorção de sentido.

Esse projeto de lei vai se utilizar dos nossos argumentos constitucionais, dos mesmos argumentos utilizados para defender direitos fundamentais, para defender práticas antidemocráticas. Essas pessoas já estão protegidas pela ordem jurídica de possíveis acusações falsas. Já existem, pelo menos, dois tipos penais específicos para essa proteção. Trazer uma proteção, ainda mais específica, tratando da falsa imputação de nazismo para a lei pode ser um mecanismo de inibição.

Racismo e Judiciário

Nos últimos dez anos, Lívia esteve à frente da Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa, de Defesa das Comunidades Tradicionais e das Cotas Raciais — pioneira no mundo quando o assunto é combate à discriminação racial. Ela afirma que, mesmo com o aumento no número de denúncias, o Poder Judiciário ainda tem dificuldade na compreensão do que é o racismo e na distinção entre racismo e injúria racial.

As pessoas se sentem encorajadas a denunciar o racismo quando o sistema de justiça atua concretamente. Uma atuação contundente, eficaz, do sistema de justiça gerou maior credibilidade. Uma maior confiança da população na aplicação das leis e, portanto, de procura ao sistema de justiça.

Embora tenham aumentado os casos de notificações dessas denúncias na Justiça, a gente tem ainda resolutividade baixa. As respostas são ineficientes no que se trata da proteção do direito a não-discriminação racial. As vítimas precisam ser amparadas também pela legislação civil, com indenização. Precisam ter o direito de acompanhar os processos criminais e cíveis que envolvem a questão racial.

Risco de revanchismo

Lívia Sant'Anna Vaz destaca também o risco de aumento de revanchismo caso a alteração na lei seja feita.

O resultado disso é que às vezes quem pratica o crime não é condenado. Isso já tem gerado, em muitos casos, infelizmente, uma revanche processual de pessoas que depois entram com ações indenizatórias contra as vítimas — de calúnia ou denunciação caluniosa.

Essa lei pode vir a inibir a iniciativa das pessoas que efetivamente sofrem racismo por medo de revanche processual. Mesmo quando não se chega a uma condenação [por racismo], só o fato de ser acusado, em um processo criminal, e de ter um inquérito policial em que foi instaurada a acusação falsa pode amedrontar grupos que já são vulnerabilizados socialmente como pessoas negras, quilombolas, indígenas, que são grupos que sofrem racismo. Essas acusações têm crescido nos últimos anos.
Lívia Sant'Anna Vaz

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