França debate inscrição da noção de consentimento na lei que criminaliza estupro
A Assembleia de Deputados da França começou a debater nesta semana um projeto de lei que visa inscrever o conceito de consentimento na definição do que é um estupro no Código Penal do país. A discussão ocorre paralelamente ao fim do julgamento de dezenas de homens acusados de estuprar Gisèle Pelicot, de 72 anos, que era sedada pelo marido para que esses crimes fossem cometidos, durante anos.
Daniella Franco, da RFI
O final do chamado "processo de Mazan" em Avignon, no sul do país, coincide com o debate sobre o projeto de lei que pode introduzir no Código Penal francês a ausência de consentimento na definição de estupro. O texto é de autoria da deputada francesa Sarah Legrain, do partido da esquerda radical França Insubmissa.
Atualmente, a legislação francesa estabelece que "todo ato de penetração sexual, de qualquer natureza que seja, cometido por meio de violência, imposição, ameaça ou surpresa" é um estupro. Ou seja, a noção de consentimento não faz parte da lei, o que leva advogados a terem que provar, a cada julgamento de crimes de violências sexuais, que o agressor agiu contra a vontade da vítima.
Foi o que ocorreu durante o julgamento dos 50 homens acusados de estuprar Gisèle Pelicot. Antes das agressões sexuais, a francesa era previamente sedada pelo marido, Dominique Pelicot, que levava para a residência do casal homens que conhecia pela internet.
Os estupros ocorreram durante cerca de dez anos em Mazan, no sul da França. Alguns advogados de defesa chegaram a evocar a possibilidade de a mulher ter consentido os atos e não estar inconsciente durante as agressões, embora os vídeos registrados pelo marido e exibidos durante o processo mostrem o contrário.
Projeto de lei divide opiniões
O projeto de lei que prevê inscrever a noção de consentimento na definição de estupro é defendido por boa parte da classe política francesa, inclusive pelo presidente, Emmanuel Macron, e o ministro da Justiça, Didier Migaud. No entanto, muitas personalidades do Direito francês e até organizações feministas contestam a iniciativa.
A ONG "Osez Le Féminisme" (Ousem o Feminismo) alega que o estupro não é uma relação sexual não-consentida, mas um ato de predação e de violência. Por isso, as militantes dessa organização temem que o projeto de lei possa culpabilizar ainda mais a vítima, colocando a atitude de quem foi violentado no centro do julgamento e deixando em segundo plano o ato do predador sexual.
Entrevistado pela France Info, Antoine Camus, um dos advogados da Gisèle Pelicot, também se opõe ao projeto de lei. Segundo ele, muitas vítimas acabam consentindo um ato sexual sem necessariamente estar de acordo com ele, para colocar um fim a uma situação martirizante.
Já o advogado Louis-Alain Lemaire, que representa quatro dos 51 homens acusados no processo de Mazan, acredita que a modificação da lei francesa poderia também interferir no funcionamento do Direito Penal. Segundo ele, atualmente cabe à acusação demonstrar que houve o estupro. Com a inserção do consentimento na lei francesa que criminaliza o estupro, o magistrado prevê que os papéis podem se inverter e caberá à defesa demonstrar que houve consentimento.
Encerramento do "processo de Mazan"
O julgamento dos 51 homens acusados de estuprar Gisèle Pelicot entrou na fase final. O Ministério Público francês apresentou nesta semana as penas para cada um dos agressores.
A pena maior é a requerida a Dominique Pelicot. Na França, a sentença máxima para estupro é 15 anos, mas como o caso de Gisèle conta com agravantes, o principal acusado do "processo de Mazan" pode ser condenado a 20 anos de prisão.
Os advogados de defesa começaram a apresentar no final desta semana as considerações finais. Terminada essa fase, cabe aos cinco juízes da corte de Avignon entrarem em acordo para o anúncio do veredito, que deve sair até 20 de dezembro.
Segundo o último balanço do Ministério do Interior da França, 250 mil pessoas adultas sofreram ao menos uma forma de violência sexual em 2022. Entre as vítimas, 88% são mulheres.
Cerca de 95% das pessoas agredidas não registraram denúncia junto às autoridades francesas por dois principais motivos. De acordo com o documento, 24% das vítimas acreditam que a iniciativa não traria resultados concretos e 16% acham que não seriam levadas a sério pela polícia.
Em 2022, apenas 1.200 condenações por estupro foram pronunciadas na França.