'Professora, licen': crianças imitam youtubers e cortam palavras ao falar
"Eu vou comer?". Não, "eu vou com".
Já viu alguma criança falando assim? Cortar as palavras ao falar é um fenômeno recente entre os mais jovens —é tipo um mineirês, só que espalhado entre as crianças do Brasil.
O motivo é incerto, mas parece ter relação com elas, as redes sociais.
"Conheço minha cunhada desde os 2 anos e meio. Reparei nisso em outras crianças da minha família também", disse a atriz Ana Cecília Banal, 23, sobre o jeitinho de falar da menina, de 10 anos.
"No início, eu achava que tinha a ver com uma ansiedade. Um pouco de 'se arrepender do que tá falando antes mesmo de terminar', mas ela disse que (fala assim) por preguiça mesmo de concluir a frase."
Ana Cecília fez um vídeo no TikTok mostrando uma conversa com a menina —no bate papo, a criança "come" as sílabas no final das frases.
O vídeo de Ana teve mais de 3,5 milhões de visualizações —e recebeu centenas de comentários de outras pessoas que dizem ter percebido o mesmo fenômeno com seus filhos, irmãos e alunos.
Muitos acreditam que seus filhos podem ter se inspirado na edição de vídeos nas redes sociais, principalmente o YouTube. Nesses vídeos, é comum fazer o "corte seco" das falas, muitas vezes "comendo" algumas sílabas finais.
As crianças estariam, portanto, reproduzindo essa estratégia de corte —mas na vida real.
Eu acredito que seja por conta da influência dos vídeos no YouTube. Para ter uma certa dinamicidade, eles costumam ser lotados de 'cortes secos' e, como as crianças assistem bastante, provavelmente reproduzem essa forma de falar (alguns propositalmente, outros sem perceber).
Ana Cecília Banal
"Eu percebo que as coisas que eles assistem têm esse corte constante na fala. Por mais que não seja tão perceptível algumas vezes, a maioria dos vídeos a que eles assistem tem esse corte seco no final das palavras, que eles acham muito engraçado", observou Clarice Cumarú, 22, que é professora de inglês para crianças.
Clarice percebeu que sua irmã, de 9 anos, e vários dos seus alunos "picotam" as frases. Segundo a professora, o hábito é ainda mais forte entre os alunos mais novos, enquanto os mais velhos parecem escolher momentos pontuais para cortar as palavras.
Eu dava aula em duas escolas. Em uma, eram mais as crianças dos 6 aos 9 anos. Todas estavam falando assim, independentemente da ocasião, tipo: 'professora, licen?'.
Clarice Cumarú
"Já em outra escola, em que eu dava aula para crianças dos 8 aos 11 anos, eu percebia que eles falavam para ser engraçado ou na hora em que iam falar algo que não deveriam, alguma palavra feia."
Clarice acredita que a convivência entre os alunos ajuda a multiplicar essa nova tendência, mesmo que parte deles não tenha acesso às redes sociais.
"No intervalo, eles eram todos amigos. Pode até ser que algum deles não tenha acesso ao celular, mas acabam falando do mesmo jeito pela convivência. Vendo a minha irmã, percebi que as pessoas que eles assistem são as mesmas", diz Clarice.
As crianças mudam até o sotaque. Sou do interior do Pernambuco e, às vezes, eles estão falando com sotaque sulista, fico meio perdida.
Clarice Cumarú
'Pelos bordões, eu percebia que vinha do YouTube'
Clarice chegou a questionar alguns alunos sobre por que eles estavam cortando as palavras, mas as crianças não gostavam de responder.
"Ou eles desconversavam ou então repetiam a palavra inteira para não ter de responder, mas, pelos bordões que eles falavam, eu percebia que era do YouTube."
Sem 'desespe'
Apesar de se impressionar com as frases picotadas, depois de conversar com outros professores, Clarice considerou que aquilo não era um grande absurdo. Fonoaudiólogas ouvidas pelo UOL concordam que, em geral, o hábito não deve causar desespero.
Especialista no atendimento de crianças, Juliana Trentini, 40, destaca que as palavras cortadas não representam uma alteração na fala ou na linguagem, "e sim um fenômeno da linguagem natural".
Tudo indica ser, sim, uma influência da internet. As pessoas falam da forma que escutam, especialmente as crianças por terem um sistema mais plástico e moldável pelo ambiente. É por isso que a gente fala com o sotaque do local onde mora ou carrega o sotaque da família quando este é muito marcado.
Juliana Trentini
A profissional diz que, apesar do costume de cortar as palavras, as crianças saberão adequar a forma de falar a outros ambientes, quando for necessário.
"Nós evoluímos como espécie com o contato frequente entre pessoas de dialetos, línguas e formas de falar diferentes. Por exemplo, no trabalho ou na universidade usamos uma linguagem mais formal, em ambientes descontraídos usamos outra modalidade de palavras e formas de falar. A linguagem formal não demonstra estar em perigo, ela segue sendo valorizada em certos ambientes."
Pais devem observar
Helena Bolli Mota, coordenadora da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia, diz que o fenômeno ainda não é um "problema fonoaudiológico", mas entende que pode ser motivo de preocupação caso a criança não consiga se comunicar com quem está ao redor.
Pode ser um pouco preocupante no sentido de que, muitas vezes, a fala perde um pouco a clareza. Muitas das palavras carregam marcações de gênero, número e tempo verbal na sílaba final. Então, muitas vezes, quando isso é cortado, pode acarretar em quebra na comunicação. A criança pode não ser bem entendida. Isso realmente pode levar a problemas futuros.
Helena Bolli Mota
Mota diz que é necessário observar esse hábito especialmente entre crianças mais jovens —como as que chamaram a atenção da professora Clarice.
"Isso pode ser preocupante quando esse comportamento se instala de uma forma que a criança não consegue mais retornar à fala 'esperada'. Se os modelos que ela está recebendo pela internet não são aqueles esperados pela comunidade linguística em que a criança fala, isso pode realmente levar a problemas de linguagem, de fala e até mesmo de alfabetização, uma vez que muitos desses processos são mediados pela audição", explica Helena.
Tempo de tela
A profissional recomenda que os pais controlem o tempo de tela dos filhos —a OMS (Organização Mundial da Saúde) recomenda tempo máximo de 1 hora de exposição por dia para crianças de 2 a 5 anos e de até 2 horas por dia para crianças de 6 a 10 anos.
Os adultos também podem ajudar as crianças (ao saberem o que elas assistem) a entenderem quando é brincadeira e quando se torna uma fala não esperada em uma comunicação do dia a dia.
Ela destaca que "cortar" as palavras apenas como uma moda de internet não é um problema, mas pode se tornar à medida que a criança não entende até onde isso pode ser feito.
"O simples fato de usar essa trend como uma brincadeira, como um jogo linguístico, não requer um tratamento fonoaudiológico. Por isso é importante a observação dos pais sobre o quanto isso realmente está afetando a vida da criança", diz Mota.
É para que os pais tomem um pouco mais de atenção nesses conteúdos, conversem mais com essas crianças, proponham algum tipo de atividade que saia um pouco das telas, em que a linguagem vai ser usada por meio de histórias, de narrativas, de diálogos.
Helena Bolli Mota
Juliana concorda que a moda em si, sem maiores complicações, não deve ser tratada como uma patologia.
"Não há necessidade de tratamento. Se fosse assim, precisaríamos tratar os mineiros que adoram comer sílabas e emendar toda a fala quando, na verdade, nós achamos um charme e um sinal de uma cultura acessível e amigável. Vida que segue e 'pó pô o pó pá coá'."