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'Falavam que era tatuagem de cadeia': tatuadores negros denunciam racismo

Fabio Lopes e Fabrício D"Art, tatuadores especializados em pele negra - Arquivo pessoal
Fabio Lopes e Fabrício D'Art, tatuadores especializados em pele negra Imagem: Arquivo pessoal
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Do UOL

22/11/2024 05h30

Ouvir frases como "tatuagem não combina com pele negra" ou "parece de cadeia" é comum para pessoas negras tatuadas — ou que buscam se tatuar. "A tatuagem, especialmente em pessoas negras, ainda enfrenta estigmas que são reflexo de racismo estrutural", diz a médica dermatologista Camila Rosa. Para ela, a combinação de preconceito contra tatuagens e discriminação racial reforça barreiras sociais.

Antes, as tatuagens eram símbolo positivo, a pigmentação da pele era comumente adotada em rituais religiosos, por exemplo. Mas no século 19 tudo mudou: esse tipo de arte se tornou estigmatizado por ser utilizado como forma de identificação por criminosos e prostitutas, além de roqueiros e hippies.

No caso do Brasil, onde as tatuagens dos encarcerados costumam retratar o tipo de crime praticado ou pertencimento a facções, outro fato pode aumentar a associação dos desenhos com a discriminação racial: 70% dos detentos são negros.

"Tatuagem de cadeia" inclusive é um dos apelidos que alguns clientes de Fabio Lopes, 28, tatuador especializado em pele negra, queixam-se de ouvir. E não é só por isso que pessoas negras têm receio de "rabiscar" a pele. A falta de conhecimento sobre os diversos tipos de pele e o desinteresse no estudo de peles negras estão por trás de tatuagens malsucedidas. Para Fabrício D'Art, 34, tatuador há 14 anos, o maior culpado pelas tatuagens feitas em pele negra que geram relevos e queloides é o próprio profissional.

Fabio conta que concursos e workshops de tatuagens reforçam o preconceito, criando o recorte de convidar apenas pessoas brancas para serem tatuadas. "Tanto que não piso em convenções de tatuagem", diz.

Tatuagem para ressignificar corpos

Foi da comunidade de Peixinhos, em Olinda (PE), que saiu uma das referências atuais de tatuadores que se especializaram em pele negra do Brasil. Fabio, que iniciou sua carreira em 2020, destaca-se por tatuar apenas pessoas negras.

Para ele, o processo foi muito natural. A partir de seu próprio letramento racial enquanto negro, Fabio entendeu que precisaria fazer algo para mudar a realidade das pessoas que já eram tatuadas e tinham traumas, ou que desejavam marcar suas peles, mas tinham receios. Para isso, o profissional estudou o racismo estrutural e depois tomou como recorte o universo da tatuagem.

Para a gente destruir alguma coisa, precisamos entender a estrutura dela. Fabio Lopes, tatuador

Além do preconceito que ele tanto relata nos vídeos que produz nas redes sociais, outra questão é levantada: as dificuldades na formação de tatuadores que vêm de periferia, como ele. Relatando a partir de sua própria história, Fabio conta que utilizou as parcelas do programa de auxílio emergencial para comprar seus primeiros equipamentos.

Para ele, um dos maiores meios de combater essa vertente do racismo pode ser a oferta de estudos sobre tatuagem em pele negra para profissionais nas periferias, onde, segundo o Censo 2022, do IBGE, a maior parte da população é negra (73%).

"Achavam que eu era recepcionista"

Fabrício Dar't, que trabalhou em estúdios de tatuagem de São Paulo de 2010 a 2020 —quando fundou seu próprio, o Senzala Lab—, traz outro recorte social: "Os pretos são os que mais consomem [tatuagem], mas que menos ganham".

De acordo com o IBGE, a população negra é responsável por fazer girar cerca de R$ 1,46 trilhão na economia, número maior que os dados de consumo de toda a classe "A" brasileira. Em contrapartida, são quem ganham os menores salários. De acordo com o Mapa da Desigualdade 2023, o salário de negros pode ser de até R$ 2.000 a menos do que o de brancos. "Entendendo isso e ofereço o melhor custo-benefício para os meus clientes", diz Fabrício.

O tatuador também destacou a falta de referência de profissionais que soubessem trabalhar nesse tipo de pele quando começou sua trajetória. Justamente por não ser comum encontrar tatuadores negros no mercado, ele conta que os clientes tinham dificuldade em vê-lo como um profissional da área e o "confundiam" com um recepcionista. Era quando ele começava a falar do desenvolvimento da arte que esses clientes se espantavam com frases como: "Pera aí, é você quem vai tatuar?".

Foi a partir do sentimento de pessoas negras e de frases preconceituosas que vinham de seus colegas de trabalho que ele decidiu estudar mais sobre como tatuar diversos tipos pele.

Em 2015 ou 2016, uma cliente preta retinta chegou, encontrou uma arte de uma sereia preta e disse que nunca tinha visto aquilo. A gente começou a trocar muita ideia sobre ela não se sentir bem nos espaços e de não ter essa referência de desenho. No final, ela saiu muito emocionada e eu acabei me emocionando junto. Foi a partir dessa tatuagem que eu disse 'é isso'. Fabrício Dar't, tatuador

Contraste e ancestralidade presentes

A pele negra tem suas especificidades quando o assunto é tatuagem. A médica dermatologista Camila Rosa, que é especialista em pele negra e membro da Skin of Color Society (EUA), diz que os pigmentos usados podem parecer mais apagados ou modificar sua cor pela tonalidade do fundo da pele, portanto o tatuador tem que ter experiência com os pigmentos utilizados.

Para Fabio, a tatuagem em pele negra "se resume em contraste". Ele traz em suas artes traços mais expressivos, pois acredita que algumas técnicas como fine line (linha fina) e realismo não foram pensadas para corpos não brancos.

Fabrício também utiliza em suas artes o contraste de luz e sombra e varia nas técnicas utilizadas para traçar linhas. "Não precisa ser um trabalho em fine line para ser delicado", diz.

Além da técnica, os tatuadores também tiveram que desenvolver um olhar mais voltado à ancestralidade africana para atenderem seu público, como o estudo de simbologias como as de Kemet (sociedade conhecida como o Egito antigo), além das religiões de matriz africana como candomblé, ifá e umbanda.

Fabio conta ainda que, assim que começou a tatuar imagens de orixás na pele das pessoas, procurou saber mais sobre o assunto em um terreiro de candomblé e, desde então, frequenta e doa parte dos ganhos de seus trabalhos. "Eu não acredito que eu possa ganhar dinheiro com o orixá e devolver nada para ele, sabe?"

Propensão a queloide: mito ou verdade?

Tatuar pele negra não é algo recente. Estudos indicam tatuagens em múmias no Egito Antigo, como a de Amunet, que teria vivido entre 2160 e 1994 a.C. Mas as informações sobre os cuidados ao se realizar um trabalho como esse em peles com maior incidência de melanina ainda são um tabu, assim como os cuidados para a cicatrização.

Pacientes negros frequentemente relatam a presença de queloides ou cicatrizes hipertróficas em suas tatuagens, além de alterações na pigmentação de áreas cicatriciais, como escurecimento (hipercromia) ou clareamento de algumas áreas (hipocromia). Camila Rosa, dermatologista

Mas isso não necessariamente vai acontecer. A médica destaca a importância de planejamento e escolha de profissionais experientes, que saberão evitar o problema. Além disso, ela fala dos cuidados pós-tatuagem:

Fazer o uso de pomadas cicatrizantes indicadas pelo tatuador ou dermatologista;

Evitar exposição ao sol no primeiro mês;

Não coçar ou arrancar casquinhas;

Hidratar a área frequentemente.

A falta de profissionais experientes aumenta o risco de resultados frustrantes. Por isso, os tatuadores, para além de desenvolverem suas técnicas, também desenvolvem um olhar empático para lidar com a baixa autoestima de pessoas negras que querem se tatuar.

Fabrício conta que pelo menos 90% de seus clientes já vêm com traumas e receios, por conta de experiências desagradáveis ou pela falta de referência de peles negras tatuadas. Também conta que, assim como o colega de profissão, ele não frequenta concursos de tatuagens por não sentir a representação de pessoas como ele.

Fabio também precisa lidar com os traumas anteriores que seus clientes tiveram ao serem tatuados por outros profissionais. "Meu trabalho é baseado no biológico e no impacto social", diz.

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