'Melhor ir ao Paraguai': alunos de medicina brasileiros deixam Argentina
Ana Julia Feu, 26, sempre quis ser médica. De Vila Velha (ES), encontrou na Argentina um jeito de estudar medicina sem pagar uma fortuna, como teria de fazer no Brasil.
Ela se mudou para Buenos Aires há 2 anos, entrou em uma faculdade particular e tudo ia bem, até que a situação tornou-se insustentável.
"Depois de colocar todos os gastos na ponta do lápis, pensei que a melhor alternativa seria mesmo voltar para o Brasil ou ir para o Paraguai."
Até o final do ano passado, o valor que Ana Julia recebia da família —o equivalente a R$ 2 mil— era mais do que suficiente para passar o mês. Ela conseguia viver com conforto e até se permitir alguns luxos, como frequentar bons restaurantes.
Hoje, seu gasto mensal gira em torno de R$ 5 mil a R$ 6 mil mensais. E, mesmo recebendo mais do que o dobro em reais, o dinheiro não é suficiente.
O valor da mensalidade da faculdade, que, no início, era de R$ 500, chegou ao patamar de R$ 3.000. O preço do aluguel também aumentou progressivamente —começou custando cerca de R$ 2.300, depois subiu para R$ 3.700 e hoje está em quase R$ 4.700.
Estou vendo meu pai, de 65 anos, trabalhar por minha causa aqui. Não passamos necessidade, mas tenho consciência de que R$ 5.000 fazem diferença para ele. No Brasil, posso tentar conseguir um empréstimo estudantil e tornar o processo mais viável financeiramente.
Ana Julia Feu
A situação de Ana Júlia é parecida com a de muitos estudantes brasileiros que veem o "sonho da medicina" frustrado na Argentina com o encarecimento do custo de vida —e das mensalidades nas faculdades.
Muitos pensam em bater em retirada do país vizinho —de volta ao Brasil ou atrás de oportunidades no Paraguai.
A Argentina adota um sistema de ensino em que não existe vestibular —por isso, atrai brasileiros que ou não conseguem vaga na universidade pública ou não podem pagar pelos estudos em faculdades privadas no Brasil.
Nas universidades públicas argentinas, não há mensalidade —mas uma recente proposta para extinguir a gratuidade para alunos estrangeiros sem documento de identidade argentino também assombra os estudantes brasileiros. Cortes de gastos para as universidades motivaram protestos no mês passado.
Atualmente, cerca de 20.000 brasileiros estudam medicina no país vizinho, segundo dados de 2022 do governo local.
A crise financeira argentina, porém, tem afetado a vida dos estrangeiros, que dependem de recursos enviados de fora.
Segundo levantamento do Centro de Estudos Scalabrini Ortiz, um grupo argentino que reúne economistas independentes, entre janeiro e dezembro de 2023, houve aumento de 285% a 309% nos aluguéis de imóveis de um a três quartos no país.
Isso ocorreu porque a lei do aluguel, aprovada pelo Congresso em 2020, que impunha limites aos aumentos dos aluguéis e havia estendido a duração dos contratos de dois para três anos, foi extinta em dezembro de 2023 pelo presidente Javier Milei.
Os contratos passaram a poder ser negociados livremente, e os proprietários também puderam passar a cobrar em dólar, tornando oficial uma prática que já ocorria informalmente.
Ana Julia mora com outras duas meninas e divide o aluguel de 800 mil pesos (o equivalente a R$ 4.600). Paga cerca de R$ 1.500 pela moradia. Antes, o aluguel era de 400 mil pesos (a metade do que é hoje).
No início do ano, cheguei a comprar um quilo de arroz por quase R$ 30 reais. As verduras também estão mais caras. Quando cheguei aqui, recebia R$ 100 por semana para gastos com mercado. Comprava de tudo. Hoje, recebo R$ 300, e, às vezes, ainda falta.
Ana Julia Feu
A situação começou a ficar insustentável, e, depois de muito refletir, Ana Julia decidiu ir embora da Argentina. Ela deve deixar o país neste mês, quando o semestre letivo chega ao fim.
Atualmente, o objetivo é conseguir transferência para o Paraguai, outro país bastante procurado por estudantes de medicina, que tem um custo de vida mais baixo, ou para o Brasil.
A mensalidade de uma faculdade particular de medicina em Vila Velha, sua cidade natal, custa, em média, R$ 6.000 —valor mensal que ela tem gasto para viver no país vizinho, longe da família.
'Instabilidade horrível'
Kamilla Cruz, 24, de Natal, vive o mesmo drama. Depois de três anos morando em Buenos Aires, também decidiu ir embora. Ela colocou os móveis à venda e deve voltar ao Brasil assim que concluir esse processo.
As dificuldades enfrentadas por Kamilla são as mesmas relatadas por Ana Julia: com o aumento do aluguel e da mensalidade da faculdade, além dos produtos de mercado, o custo de vida se tornou insustentável.
Até o final do ano passado, ela vivia muito bem na Argentina, mas a situação mudou drástica e repentinamente.
O país vive uma instabilidade horrível. A faculdade que eu fazia está com um reajuste mensal, e não é uma porcentagem fixa. Você abre o boleto e descobre o valor.
Kamilla Cruz
Kamilla estudava na Universidade de Buenos Aires (UBA), e, no ano passado, se transferiu para a Fundación Barceló, uma instituição privada, que ela avalia oferecer melhor qualidade de ensino.
"O aluguel e produtos de mercado também estão absurdamente caros. Para se ter uma ideia, paguei R$ 30 em uma caixa de ovos na promoção. O básico do básico está com o preço nas alturas", diz a estudante.
Dá dor no coração, porque tem muita gente indo embora.
Kamilla Cruz
Ela desistiu da carreira e vai voltar a estudar medicina veterinária.
'R$ 70 na porção de batata'
No TikTok, estudantes que cursam medicina desabafam sobre o assunto. Em cada um dos vídeos, há centenas de comentários de pessoas que afirmam passar pela mesma situação.
Kamila Delmiro foi uma delas: em um vídeo, aparece em um bar, antes tido por ela como bom e barato. Então, diz que pediu uma porção de batatas fritas por R$ 57 e duas caipiroscas — uma para ela e outra para o namorado — por R$ 25 cada.
Ao final do vídeo, brinca: "Vou tomar até a última gota desse drinque, raspar até o sal da batata frita e nunca mais venho aqui".
Nas redes, os comentários ecoam o relato de Kamila. "Paguei R$ 16 na Coca-Cola de lata e R$ 65 na cerveja Quilmes. Uma porção de batata, R$ 70. Isso nos lugares mais baratos", escreveu um.
"Viver na Argentina está quase impossível com a baixa cotação [do real] e os preços elevados", constatou outro. "Me pergunto todo dia: eu que estou pobre ou está tudo supercaro?", questionou um terceiro.
Ao UOL, Kamila Delmiro conta que optou por permanecer na Argentina apesar da crise, mas diz que só consegue se manter no país porque recebe ajuda dos pais.
Há dois anos, mora em La Plata e divide apartamento com a irmã, que também é estudante de medicina. Kamila Delmiro estuda na Universidade Nacional de La Plata, uma instituição pública.
Se eu não tivesse o apoio financeiro dos meus pais, já teria voltado. O valor do aluguel aumentou muito. Comecei pagando cerca de R$ 1.500. Um mês depois, o valor subiu para R$ 2.500.
Kamila Delmiro
"Antigamente, minha irmã e eu gastávamos R$ 500 na feira para comprar carne, verduras e tudo o que consumimos. Agora, gastamos entre R$ 800 e R$ 900. Carne era muito barato aqui, agora não é mais", acrescenta.
Quem recebe em real sofre mais
Em fevereiro deste ano, a inflação da Argentina chegou a quase 300% ao mês, tendo sido noticiada, à época, como "a inflação mais alta do mundo pelo terceiro mês consecutivo".
Hoje, a inflação baixou a 3,5%, a taxa mais baixa em quase três anos. Apesar disso, o país segue imerso na crise.
Segundo o economista argentino Fernando Montero, o Produto Interno Bruto (PIB) deste ano deve cair 4% ou mais —e já vem de uma queda no ano passado. Isso resulta das políticas econômicas adotadas por Milei. É um "tratamento de choque", com efeito recessivo.
Desde o início do governo, o dólar despencou na Argentina, e o real foi junto. Em um ano, a cotação caiu pela metade. Isso significa que o custo de vida para quem recebe em real dobrou no período.
Por isso, os estudantes brasileiros sofrem ainda mais com a crise do que a própria população argentina.
"Esses preços daqui em relação a aluguel, faculdade, beiram um pouco a loucura", diz Ana Julia, que prepara seu movimento de saída. "Não está dando mais para mim", completa Kamilla Cruz.