Topo
Notícias

Quebec passa a aceitar pedidos antecipados de ajuda médica para morrer

30/10/2024 14h14

A província de Quebec, no Canadá, amplia a partir desta quarta-feira (30) o direito de acesso à eutanásia para pessoas com doenças neurodegenerativas. Os indivíduos diagnosticados com uma patologia como o mal de Alzheimer, entre outras, poderão preencher um formulário para deixar registrado um "pedido antecipado" de assistência médica para morrer, antes de chegarem a um estágio em que não tenham mais lucidez para manifestar esse desejo.

A eutanásia é autorizada por lei no Quebec desde 2015. Com a criação dessa espécie de "testamento sobre a morte", a província de população predominantemente francófona se junta aos raros lugares do mundo onde os pedidos prévios foram legalizados - Holanda, Bélgica, Luxemburgo e Colômbia -, sem esperar que o restante do país adote a mesma iniciativa.

A quebequense Sandra Demontigny disse à agência AFP que está "aliviada". Esta mãe de família de 45 anos, que sofre de Alzheimer precoce, poderá fazer um "pedido antecipado" de ajuda médica para morrer antes de perder a capacidade neurológica e cognitiva para manifestar seu consentimento. "Sinto que finalmente tenho controle sobre o que resta da minha vida", disse ela.

"O meu estado está se degenerando" e, sem essa medida, "eu ficaria prisioneira do meu corpo durante anos", afirma esta ex-parteira, que continua profundamente marcada pelo que seu pai viveu, também sofrendo de Alzheimer, uma doença incurável.

Antes de morrer, aos 53 anos, ele "falava sozinho olhando no espelho" pensando que era outra pessoa e andava "de quatro enquanto batia a cabeça na parede", conta a canadense.

Para essa ex-profissional da Saúde, era inconcebível que ela vivenciasse essas "atrocidades" quando chegasse a hora de perder o contato com a realidade. Sandra Demontigny vinha fazendo campanha há anos para que os pedidos antecipados fossem permitidos no país.

Na semana passada, o caso do escritor, poeta e membro da Academia Brasileira de Letras Antonio Cicero, que deixou uma carta a familiares e amigos explicando por que ele optou pelo suicídio assistido na Suíça, aos 79 anos, relançou o debate sobre a eutanásia no Brasil.

"Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade", disse Cicero, que também sofria de Alzheimer.

Critérios "muito rigorosos"

Antes da ampliação do acesso à eutanásia, a província de Quebec já era o local do mundo com a maior proporção de mortes relacionadas com a assistência médica para morrer: 5.686 pessoas receberam em 2023 substâncias letais para uma morte serena e digna, o que representa 7,3% dos óbitos na província. A maioria dos beneficiados tinha 70 anos ou mais, sofria de câncer e tinha um prognóstico de sobrevivência de um ano ou menos.

"A aceitação social é muito forte, por isso há uma forte expectativa", destaca Marie-Eve Bouthillier, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de Montreal. Ela acredita que "muitas pessoas vão querer fazer pedidos", mas os critérios são "bastante estritos".

Dois médicos ou enfermeiros especializados terão que avaliar se o paciente sente "sofrimento físico ou psicológico persistente e insuportável" que não pode ser aliviado, conforme prescrito pela lei do Quebec. O paciente deve também explicar claramente quais são as "manifestações clínicas" que considera intoleráveis ??- por exemplo, não reconhecer mais os filhos ou incontinência. Essas declarações por escrito serão determinantes para a decisão de que a pessoa deve receber ajuda para morrer.

Difícil para os médicos

Apesar de a visão sobre a morte assistida ser consensual para a maioria da população do Quebec, a ampliação do acesso à eutanásia para pacientes com doenças neurodegenerativas é acolhida com reservas por alguns médicos.

"O que será mais difícil será administrar ajuda médica para morrer (substâncias letais) para alguém que não está mais consciente e que não se lembra de ter solicitado", afirma David Lussier, médico e membro da Comissão de Tratamentos Paliativos de Quebec.

Caso o paciente faça um "gesto de recusa", em princípio o médico deverá cancelar o procedimento. Mas se um paciente "resiste, e isso faz parte da sua doença", então é possível ir até ao fim, o que levantará questões éticas aos profissionais, acrescenta.

O médico Claude Rivard, que administrou centenas de eutanásias nos últimos dez anos, teme que seja necessário utilizar medidas de contenção para permitir a instalação de soros intravenosos.

"Na cabeça da família, isso poderia ser visto como uma execução", teme. Esta é uma situação "muito diferente" de um caso em que o paciente "está em forma, diz "sim, eu quero", e estende o braço", acrescenta o médico. Rivard tomou a decisão de não administrar substâncias letais em pessoas que redigirem pedidos antecipados, pelo menos no momento.

Na avaliação do médico Laurent Boisvert, que também pratica a morte assistida desde 2015 e não vê "nenhum problema" com a ampliação de acesso, os receios manifestados pelos colegas são "teóricos". 

"A pessoa consciente, que interage com seus entes queridos e com a sociedade, vai embora". Segundo ele, "responderei aos desejos da pessoa que era capaz, que teve uma vida que considerava digna e decente e que não existe mais", diz Boisvert.

Franceses vivem na espera de uma aprovação

Desde 2016, quando a França aprovou a primeira lei sobre o fim da vida, a maioria de franceses já ansiava pela liberdade de decidir sobre a morte diante de doenças irreversíveis, terminais ou de intenso sofrimento para os pacientes.

O projeto de lei só chegou ao Parlamento em 2024, mas depois, com a dissolução da Assembleia, em junho, a votação ainda não foi retomada pelo novo plenário e a composição, agora, é mais conservadora, de direita, o que pode implicar emendas ao projeto original.

Há anos existe um consenso na sociedade sobre essa liberdade de escolha: 84% dos franceses são favoráveis à eutanásia, quando a equipe médica provoca o falecimento do paciente, e 67% ao suicídio assistido, quando o paciente ingere a dose do produto que leva à morte.

Com informações da AFP

Notícias