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OPINIÃO

O uso do superávit financeiro eleva a dívida pública

, Josué Pellegrini e Gabriel Garrote*
do UOL

Colunista do UOL e Colaboração para o UOL

28/10/2024 05h30

Uma prática que tem sido adotada em 2024 é a aprovação de leis que autorizam o uso do superávit financeiro no balanço da União para financiar despesas com determinadas políticas.

Mostraremos três exemplos que totalizam uso de R$ 37 bilhões.

Explicaremos em seguida que essa prática nada mais é do que financiar despesa com aumento da dívida pública. Como essas políticas também podem elevar os ativos da União, em um primeiro momento, a dívida líquida (dívida bruta menos ativos) pode não mudar. Entretanto, em razão da qualidade desses ativos, notadamente quanto ao risco de perda e retorno, o efeito ao longo do tempo acaba por elevar tanto a dívida bruta, como a líquida.

O primeiro exemplo é o uso de até R$ 20 bilhões do superávit financeiro do Fundo Social para o financiamento, por meio do BNDES, das ações de mitigação e adaptação às mudanças climáticas e de enfrentamento das consequências sociais e econômicas de calamidades públicas.

Isso se deu por meio da Lei n.º 14.981, de 20 de setembro de 2024. Esses recursos já foram para o BNDES, tendo como contrapartida o aumento dos créditos do Tesouro junto a esse banco.

O segundo exemplo é a autorização da transferência de até R$ 13 bilhões, também do superávit financeiro do Fundo Social, para financiar os aportes de até R$ 20 bilhões da União no fundo criado para viabilizar o Pé-de-Meia. Esse programa transfere quantias aos estudantes do ensino médio, de baixa renda, que cumprirem certos requisitos. A norma nesse caso foi a Lei nº 14.818, de 16 de janeiro de 2024. Os R$ 13 bilhões ainda não foram integralmente utilizados, mas isso deverá ocorrer com a implementação do programa.

Em um primeiro momento, há aumento dos ativos da União, na forma de participação da União no fundo do Pé-de-Meia. Entretanto, esse ativo se perderá à medida que os alunos cumprirem os requisitos e receberem as quantias definidas na lei. Na verdade, se trata, na essência, de uma típica despesa primária que deveria estar no Orçamento Geral. A situação está sendo analisada pelo TCU.

O terceiro exemplo foram os R$ 4 bilhões de ajuda às companhias aéreas, autorizados pela Lei nº 14.978, de 18 de setembro de 2024, conhecida como Nova Lei do Turismo. Os recursos são originados do superávit financeiro do FNAC (Fundo Nacional de Aviação Civil). Note que a ajuda poderá ser concedida anualmente, com tamanho definido pelo conselho gestor do fundo. O BNDES será o agente financeiro que realizará as operações, podendo habilitar outras instituições financeiras.

Nos três casos, observamos que ocorre um aumento do ativo da União, na forma de créditos do Tesouro junto ao BNDES, R$ 20 bilhões, ativos do fundo do Pé-de-Meia, R$ 13 bilhões, e apoios às aéreas, R$ 4 bilhões. O aumento do ativo da União resulta em redução da Dívida Líquida do Setor Público (DLSP), pois a esse passivo chegamos subtraindo os ativos da dívida bruta.

Ocorre, entretanto, que a redução da DLSP ocasionada pelo aumento de ativos é apenas o efeito visível das práticas descritas. Há também um efeito menos transparente que é o aumento da dívida bruta (dívida sem desconto dos ativos). Vale dizer, os ativos sobem e a dívida pública bruta também, de modo que a DLSP permanece a mesma, mas a dívida bruta sobe.

Como esse último efeito ocorre?

A resposta está no uso do chamado superávit financeiro. Em algum momento no passado, recursos entraram nos cofres do Tesouro e não saíram integralmente, para bancar despesas ou outro fim, daí a geração do superávit financeiro.

Quando isso ocorreu, foi retirada liquidez da economia, o que permitiu ao Banco Central realizar menos operações compromissadas do que seria necessário se não tivesse ocorrido o superávit financeiro.

Essas operações, vale lembrar, integram a estatística da Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG).

Quando o superávit financeiro é utilizado, ocorre o movimento reverso. Eleva-se a liquidez da economia e o Banco Central faz mais operações compromissadas do que seria necessário não fosse a utilização do superávit. Assim, fica esclarecido que usar o superávit financeiro para financiar determinado fim equivale a financiar com endividamento público.

Se o uso gera ativos, a dívida bruta sobe, mas a líquida permanece a mesma.

Isso é o que se pode esperar como efeito mais imediato, mas, ao longo do tempo, se os ativos rendem menos que a dívida pública, ocorre um aumento dos juros líquidos devidos e do déficit nominal do setor público (déficit primário mais juros líquidos devidos). Esse aumento do déficit, por sua vez, é financiado com aumento da dívida pública.

Como não há aumento de ativos nesse segundo momento, tanto a dívida bruta como a dívida líquida sobem.

Assim, o uso do superávit financeiro promove um aumento inicial da dívida pública, correspondente ao montante de superávit utilizado, e aumentos posteriores, decorrentes da necessidade de financiar o aumento dos juros líquidos devidos.

É claro que, se os ativos gerados sofrerem baixas por alguma razão, ao longo do tempo, a exemplo da inadimplência dos tomadores de empréstimos ou simplesmente pelo uso desses ativos, conforme destacado na análise do Pé-de-Meia, ocorre um aumento imediato da dívida líquida equivalente à baixa do ativo.

Em um caso extremo, de perda rápida e total do ativo, a dívida líquida sobe já de início, assim como a dívida bruta.

Não é à toa que a dívida pública tem subido rapidamente. Além do déficit público e dos elevados juros que precisam ser financiados, temos ainda a "compra" de ativos, que gera nova pressão sobre o endividamento.

Se fossem ativos com bom retorno e baixo risco, ainda haveria o consolo da manutenção da dívida líquida. Como sabemos que não é esse o caso, o efeito final é o aumento tanto da dívida bruta, como da dívida líquida.

*Josué Pellegrini e Gabriel Garrote: economistas da Warren Investimentos.

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