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Papa Francisco canoniza religioso por milagre realizado na Amazônia

20.out.2024 - Papa Francisco na Praça São Pedro, Vaticano - FILIPPO MONTEFORTE/AFP
20.out.2024 - Papa Francisco na Praça São Pedro, Vaticano Imagem: FILIPPO MONTEFORTE/AFP

Gina Marques;correspondente da RFI em Roma;

20/10/2024 09h57

O papa Francisco proclamou 14 novos santos neste domingo (20), durante a Missa na Praça de São Pedro. Entre eles, está o italiano José Allamano, religioso fundador da congregação dos Missionários da Consolata, canonizado por um milagre na Amazônia.

O milagre atribuído à intercessão de Allamano ocorreu em 1996 na floresta amazônica brasileira, no estado de Roraima, onde Sorino, da etnia Yanomami, foi atacado por uma onça que feriu gravemente a sua cabeça, abrindo-lhe o crânio. Ele foi socorrido pelas missionárias da Consolata e transportado para o Hospital de Boa Vista. As religiosas pediram sua recuperação ao fundador deste instituto missionário, o padre Allamano.

Sorino recuperou a saúde em poucos meses e atualmente vive, sem sequelas, em sua comunidade indígena na Terra Indígena Yanomami.

Giuseppe Allamano nasceu em 1851 no Piemonte, norte da Itália, e morreu em 1926 na mesma região. Foi um missionário que nunca partiu da Itália, mas incentivou a participação dos sacerdotes em missões, principalmente no Quênia, na África, e no Brasil - onde seu nome foi traduzido para José.

O religioso foi proclamado beato em 1990 pelo Papa João Paulo II.

Ataque de onça

O indígena Sorino estava caçando com um grupo na floresta, armado de arco e flechas, quando foi ferido por uma onça-pintada que, segundo relatos, estava acompanhada por filhotes. A felina atacou por trás, arrancando parte do couro cabeludo do homem e abrindo sua cabeça. O grupo de caçadores Yanomami tentou socorrê-lo e, devido à gravidade dos ferimentos, pediu ajuda às religiosas que viviam as proximidades.

Felicita Muthoni, de origem do Quênia, foi a primeira missionária a dar assistência. "Um dos indígenas veio me chamar porque o seu cunhado havia sido ferido por uma onça. Quando cheguei na aldeia, havia um homem estendido no chão de terra sobre uma poça de sangue", contou ela, à RFI. "O crânio dele estava aberto e pedaços de cérebro para fora. Com delicadeza, limpei com água, coloquei os pedaços do cérebro no crânio, e amarrei o seu couro cabeludo com o único tecido que eu tinha, minha blusa", disse a missionária.

A irmã Felicita contou que os indígenas acreditavam que Sorino não sobreviveria e houve relutância por parte dos líderes Yanomami sobre levá-lo ao hospital. "Os pajés me diziam que se Sorino morresse fora da aldeia, não encontraria nunca mais seus antepassados. A porta ficaria fechada ao seu espírito. No final conseguimos convencê-los que havia chances dele sobreviver", lembrou. "O tempo todo eu rezava a Deus e pedia que José Allamano nos ajudasse".

Cura sem explicação científica

O colombiano Mario Santacruz, médico neurocirurgião que trabalha há muitos anos no Hospital de Boa Vista, onde Sorino foi operado, recordou que a situação era gravíssima. "Sorino era jovem e chegou no hospital depois de três dias de viagem desde a sua aldeia. Seus ferimentos eram graves, com perda de osso e substância cerebral. Fizemos a operação, mas perdeu grande parte do cérebro no lobo frontal, parietal, temporal e parte do occipital. Para nossa surpresa ele foi se recuperando bem e ficou sem nenhuma deficiência", explicou à reportagem RFI.

Segundo o médico, não há explicação científica para esta recuperação do indígena. "Considerando a perda da substância cerebral, ele teria um déficit muito grande com danos motórios, paralisia e problemas intelectuais. Fizemos todos os exames e constatamos que ele voltou ao normal, sem sequelas."

Indagado sobre acreditar em milagre, o neurocirurgião respondeu: "apesar de a minha educação familiar ser católica, naquela época do incidente eu era mais concentrado na parte científica. Mas depois desse caso, comecei a acreditar que o milagre existe", declarou Santacruz.

Histórico da missão na Amazônia

A Missão Catrimani com os missionários de Consolata na Terra Yanomami, que leva o nome do rio brasileiro ao oeste do estado de Roraima, foi criada pelo Concílio Vaticano II durante a década de 1960.

"Especificamente na Terra Yanomami, a missão não é de anúncio explícito do evangelho. Foi criada para o diálogo, valorização da cultura e do respeito à forma religiosa que o povo indígena vive, sem fazer proselitismo", afirmou o bispo de Roraima e presidente da rede Eclesial Pan-Amazônica, dom Evaristo Spengler.

Segundo ele, a missão tem trazido proteção a este povo indígena da Amazônia, embora haja áreas onde a floresta foi devastada e os rios foram tomados pelo garimpo.

"Naquela região, o povo Yanomami consegue proteger a floresta e os rios por causa de uma consciência nova que a Igreja vai levando, no seu direito à vida, na sua dignidade como povo. O diálogo não é no sentido que um seja superior e o outro inferior, é de igualdade. Queremos nos enriquecer mutuamente a partir da espiritualidade, da visão de mundo e da cultura de cada um", ressaltou.

Na apresentação da canonização de José Allamano no sábado (19), na sala de imprensa do Vaticano, também estava presente Júlio Ye'kwana, presidente da Associação Wanasseduume Ye'kwana (Seduunme) e líder indígena do território Yanomami em Roraima.

"Estamos pedindo socorro aos europeus e ao mundo. Durante os quatro anos do governo Bolsonaro, sofremos a invasão ilegal de garimpeiros que trouxeram vários tipos de doenças, contaminaram nossos rios e estão destruindo a floresta. Perdemos muitas vidas, inclusive de crianças", disse à RFI.

Júlio Ye'kwana ressaltou que o governo Lula decretou emergência na saúde pública na Terra Yanomami e tenta corrigir os erros do antecessor, mas ainda há muito para ser feito.

"As águas dos rios contaminados pelo mercúrio nunca mais voltarão a ser limpas. É muito difícil reconstruir a floresta. Estamos sofrendo as consequências. Muita coisa ainda deve ser feita pelo governo Lula em relação a combater doenças", salientou o líder indígena.

A situação ambiental foi agravada pelas mudanças climáticas. Como se não bastasse enfrentar o garimpo e a crise humanitária, com surtos de gripe e malária, desnutrição, estupros, violência, mortes e destruição do meio ambiente, o povo Yanomami sofre agora com a série de incêndios que devasta suas casas comunitárias, suas roças e bens de subsistência.

Violência contra indígenas no Brasil

O cardeal o Leonardo Steiner, arcebispo de Manaus e presidente do Conselho Indigenista Missionário, falou da importância deste milagre para a comunidade Yanomami. Ele também ressaltou as difíceis condições de vida dos povos indígenas.

Entre 2018 e 2022, na Terra Indígena Yanomami, mais de 500 crianças com menos de um ano de idade morreram por causas que poderiam ter sido evitadas. Segundo o cardeal, com o governo Lula houve uma melhora, mais ainda é insuficiente.

De acordo com o último relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a violência contra indígenas persistiu em 2023, ano marcado por ataques a direitos e poucos avanços na demarcação de terras. O documento mostra que o primeiro ano do terceiro governo Lula foi marcado por impasses e contradições na política indigenista.

"As disputas em torno dos direitos indígenas nos três Poderes da República refletiram-se num cenário de continuidade das violências e violações contra os povos originários e seus territórios em 2023. O primeiro ano do novo governo federal foi marcado pela retomada de ações de fiscalização e repressão às invasões em alguns territórios indígenas, mas a demarcação de terras e as ações de proteção e assistência às comunidades permaneceram insuficientes", aponta o relatório.

O Cimi concluiu que o ambiente institucional de ataque aos direitos indígenas repercutiu, nas diversas regiões do país, na continuidade das invasões, conflitos e ações violentas contra comunidades e pela manutenção de altos índices de assassinatos, suicídios e mortalidade na infância entre estes povos.

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