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É preciso ousadia do governo para ser 'líder verde', diz Kamila Camilo

Kamila Camilo, diretora executiva do Instituto Oyá - Edgar Azevedo/Divulgação
Kamila Camilo, diretora executiva do Instituto Oyá Imagem: Edgar Azevedo/Divulgação
do UOL

Marina Filippe

Colaboração para Ecoa

20/10/2024 05h30

"Vamos perder oportunidades de fazer a diferença nas discussões porque não estamos agindo com a responsabilidade necessária para a preservação." O diagnóstico sobre o papel do Brasil como uma "liderança verde" na regeneração e preservação da biodiversidade é da ativista Kamila Camilo, diretora executiva do Instituto Oyá e líder do Davos Lab Brazil, ligado ao Fórum Econômico Mundial.

Esse deve ser um dos pontos focais da participação brasileira na 16ª Conferência das Partes sobre Biodiversidade, a COP16, evento que começa nesta segunda-feira (21) e vai até 1º de novembro, em Cali, na Colômbia. "A sensação que tenho é que a COP16 será um divisor de águas para a sociedade civil", diz Kamila. "O Brasil terá um papel fundamental", completa a executiva sobre a conferência que acontece a cada dois anos e deve movimentar o mundo em torno de discussões sobre como combater a perda de biomas e espécies em diversos ecossistemas.

A poucos dias da cúpula mundial, porém, menos de 15% dos 196 países apresentaram planos para conter a destruição da natureza, e o Brasil deve se juntar a esse grupo. Em entrevista para Ecoa, Kamila discute esses desafios e as oportunidades de negociação e antecipa as expectativas para a conferência. Leia a seguir trechos dessa conversa.

Ecoa: O que podemos esperar da COP16 e em que contexto ela acontece?

Kamila Camilo: Nunca antes foi tão importante abordar biodiversidade, especialmente no contexto de perdas. Estamos falando muito de mitigação e corte de emissões de gases causadores do efeito estufa (GEE), mas ainda não se criou um mercado para tratar as necessidades da biodiversidade e frear as perdas. A impressão que tenho é que não damos o devido valor, inclusive financeiramente, mas é preciso apoio e dinheiro para o tema fluir. O mundo perde 150 espécies por dia, um alto índice de extinção.

Mas, nunca se calculou a perda econômica disto, algo que pode motivar a mudança.

Estamos claramente vendo os problemas gerados pelas mudanças climáticas, como as queimadas no interior de São Paulo e no Pantanal, causando danos que estavam previstos para daqui a 50 anos se nada fosse feito. Assim como as enchentes no Rio Grande do Sul, que impactaram centenas de milhares de pessoas.

Como o evento pode ampliar o financiamento para projetos de restauração e proteção da biodiversidade?

Vejo mais projetos do que práticas estabelecidas, pois restauração e regeneração demandam altos investimentos. Além disto, as COPs da Biodiversidade costumam ser mais técnicas, diferentemente das Conferências de Mudanças Climáticas, que neste ano terá a 29ª edição, no Azerbaijão, em novembro, e que virou um balcão de networking.

Na prática, quem está olhando para os animais que morrem nas queimadas ou durante as secas? Mesmo com o cenário brasileiro de agravamento das mudanças climáticas, a maior discussão ainda tem sido o mercado de carbono, sendo que é preciso reverter a perda dos ecossistemas. A COP16 pode ditar passos para a criação de créditos de biodiversidade e elevar o tema nas mesas de decisão das organizações.

Quais são as expectativas, então, para esta conferência?

A primeira é ter um financiamento de biodiversidade como um marco global, com dinheiro suficiente, de forma que seja cumprida a meta estabelecida em 2022 de preservação de 30% das áreas de terra e água do planeta até 2030. Isto é um desafio e tanto se pensarmos na exploração de petróleo brasileiro, na caça de baleias no Japão e até nas prisões de ativistas em países como Dinamarca.

Acompanhando grupos de comunicação dos brasileiros que estarão na COP16, percebo também o importante papel da juventude, especialmente na pauta das comunidades tradicionais. É preciso chegar num consenso do que são comunidades tradicionais, porque, se não me engano, há 28 definições para elas, que a abrangem de indígenas e quilombolas e, em alguns países, garimpeiros. Assim, vamos precisar chegar a uma definição que funcione legalmente para todos os países, para que os recursos sejam acessados apenas por quem de fato está protegendo a biodiversidade. Outras conversas também estão em jogo, como uso do solo e agricultura regenerativa.

Qual a importância do Brasil nessa discussão?

O Brasil tem uma enorme relevância por conta da biodiversidade, sendo fundamental na proteção dos ecossistemas e espécies. Contudo, recentemente, foi publicada uma coluna de Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa e especialista em clima, sobre a necessidade de ousadia. E concordo com ela. É preciso ousadia do governo e das instituições para liderar a transformação. Ao mesmo tempo, penso que vamos perder oportunidades de fazer a diferença nas discussões porque não estamos agindo com a responsabilidade necessária para a preservação.

O mundo olha para o Brasil como um possível líder na regeneração e preservação da biodiversidade. O discurso do país também traz elementos de "liderança verde", mas é necessário avançar nas práticas, atos políticos, decretos e fiscalizações. Por exemplo, estamos falando de desmatamento zero, mas é preciso reflorestamento.

Nós, como Instituto Oyá, somos parte de um time de pesquisa na Universidade de Zurique e percebemos que há o desafio de agir porque não temos dados e tecnologia para monitorar a biodiversidade. Atualmente, 80% dos dados sobre o tema no mundo são referentes aos países do Norte Global. Enquanto os Estados Unidos têm, praticamente, todas as espécies de pássaros regionais catalogadas, há menos de 0,3% de dados sobre a Amazônia. Isto abriu nossos olhos sobre o quanto precisamos investir nos dados, no fortalecimento das comunidades tradicionais, e em análises que envolvam políticas socioeconômicas de inclusão.

A COP16 tem, então, o papel de contemplar conversas que introduzem linguagens e definições técnicas para influenciar sistemas, inclusive da "COP principal". Este é um momento importante de definições para que o Sul Global - países que mais sofrem com as mudanças climáticas, mesmo sendo menos emissores, e do qual o Brasil faz parte — não fique para trás nas conversas e no acesso a financiamentos.

A COP16 tem ganhado mais relevância no Brasil do que tiveram as anteriores. Por quê?

Tenho percebido que sim e acredito que isso acontece por alguns motivos: o primeiro está ligado ao custo de se participar de uma COP. Diferentemente do ano passado, no Canadá, a proximidade [geográfica] com a Colômbia tornará mais provável a presença de brasileiros.

Além disso, muitas pessoas estão indo para a COP16 para entender a dinâmica e se preparar para a COP30, no Brasil. A presença nos eventos cria uma ideia de autoridade, e muita gente já está em busca disso. A intenção é chegar ao evento do ano que vem conhecendo os atores e mostrando que algo já vinha sendo feito.

A sensação que tenho é que a COP16 será um divisor de águas para a sociedade civil, para além dos especialistas já engajados. Contudo, o processo de participação não está sendo fácil, com muitas burocracias no credenciamento.

Você citou possíveis acordos durante o evento. Mas, se existirem, qual é a chance de serem cumpridos, considerando, por exemplo, que houve pouco avanço nas discussões sobre regularização do mercado de carbono ou diminuição do uso de combustíveis fósseis?

O texto final é sempre uma comoção, mas o cumprimento é lento e não deve ser diferente agora, especialmente porque os países precisam concordam e agir. O desafio é que não existe uma penalidade pela falta de atitude e muitas pessoas que deveriam liderar as práticas, como governantes, estão deixando isso de lado, visto que as metas são para 2040 ou 2050.

Se continuarmos perdendo ecossistemas na velocidade atual, chegaremos ao ponto de não retorno, com danos irreparáveis. Então, quero acreditar que ao menos países com alta biodiversidade terão um trabalho ativo para conseguir financiamentos que mitiguem os danos e impactos no médio e longo prazos. Cada país entende onde está a sua dor e como pode cumprir as metas.

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