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OPINIÃO

Haddad quer tirar pobre do Orçamento sem incluir rico no IR. Alguma chance?

do UOL

Colunista do UOL

16/10/2024 16h53

Começou torto e pode dar errado o movimento iniciado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para revisar gastos públicos, aliviar o arcabouço fiscal e acalmar o mercado.

O mercado financeiro formou uma sólida desconfiança de que o governo Lula não se preocupa com os risco da instalação de uma crise fiscal, em futuro não longínquo. Essa convicção se apoia na insistência do governo em turbinar gastos públicos, e na visão de que já foi esgotado o espaço para aumentar receitas, o que tem levado a cada vez mais frequentes tentativas de driblar os tetos fiscais do arcabouço lulista.

Anomalia nos juros

Essa desconfiança se traduz na trajetória das curvas de juros futuros. Os ramos de curto prazo dessas curvas estão com taxas mais altas do que os ramos mais longos. Tal inversão é anormal, uma vez que taxas de longo prazo deveriam embutir riscos maiores do que as de curto prazo, pagando, portanto, taxas mais altas.

Nos Estados Unidos, quando a curva de juros futuros fica invertida, entende-se como sinal de proximidade de uma recessão econômica. No Brasil, a inversão é, basicamente, sinal de desconfiança em relação à recuos na inflação e, consequentemente, nas próprias taxas de juros.

Não é mera coincidência que as LFTs (Letras Financeiras do Tesouro), um título público sem risco, com liquidez diária, herança não eliminada do período de hiperinflação, estejam em alta no mercado de dívida pública. Inventada em 1987 pelo autores do Plano Real, quando o Plano Cruzado II já fazia água, as LFTs distorcem a tiram potência da política monetária.

As LFTs chegaram a representar dois terços da dívida mobiliária federal na virada de FHC para Lula, em 2002. Em 2012, apesar de todos os esforços para substituí-las por títulos da dívida pré-fixados, ainda representavam um terço do total.

Voltaram a ocupar mais espaço na composição da dívida com a pandemia e deveriam se conter no intervalo entre 40% e 44%, no PAF (Plano Anual de Financiamento) da dívida, divulgado no início de 2024. Embora o objetivo do Tesouro fosse reduzir a carga de LFTs na dívida ao longo do ano, em setembro, o Tesouro alterou os limites de referência, elevando a participação prevista das LFTs na composição da dívida, neste ano, para 43% a 47% — quase metade, do total.

Pressão do mercado

Nesse contexto de pressão do mercado, pode-se entender o anúncio de mudança nas prioridades fiscais do governo, com anúncios de possíveis medidas ainda inconclusas e sem consenso no governo.

Haddad lançou o movimento de revisão nesta segunda-feira (14) com uma entrevista à jornalista Monica Bergamo, da Folha, e falas num seminário. No mesmo dia, vazamentos variados de balões de ensaio de medidas de contenção de gastos chegaram a diversos veículos das mídias mais tradicionais. A ideia assegurar que o projeto de revisão e corte de gastos passaria na frente da reforma tributária da renda, deixando esta para 2025 ou talvez mesmo 2026.

Pouco mais de 48 horas depois, nesta quarta-feira (16), porém, o próprio Haddad foi obrigado a se explicar melhor. No dia anterior, terça-feira (15), a ministra do Planejamento, Simone Tebet, já tinha vindo a público para restringir o alcance dos esboços de medidas anunciados. "Não se mexe nos reajustes reais do salário mínimo, nem sua vinculação às aposentadorias", avisou Tebet, creditando a interdição a vetos de Lula.

Prioridade nos cortes?

Se a intenção era acalmar a Faria Lima, a estratégia parece não ter sido bem sucedida. Inicialmente, os mercados de ativos reagiram bem à aparente rendição do governo à convicção do mercado de que a dívida pública seria insustentável sem cortes substanciais nos gastos públicos. A cotação do dólar deu uma recuada, assim como a taxa de juros futuros.

Logo, contudo, dólar e juros voltaram a subir. Declarações de Lula na direção contrária a das revisões e cortes anunciados por Haddad, ajudaram a reforçar desconfianças de que Haddad, se tinha combinado alguma coisa com Lula, era apenas para lançar balões de ensaio e sentir a reação da praça — não que o presidente já tivesse batido o martelo em favor dos cortes.

Muito difícil, de fato, acreditar que Lula tenha topado dar a prioridade anunciada por seu ministro da Fazenda aos cortes e revisões de gastos antes de outras reformas na direção de aumentar a arrecadação, compensando gastos sociais, por exemplo, via taxação dos mais ricos.

É sabido que uns 80% do Orçamento podem ser classificados como gastos sociais. Por isso, cortes e revisões orçamentárias significam, inevitavelmente, redução de benefícios que se destinam aos mais pobres.

Muralha política

Parece inconcebível, em resumo, que Lula aceite retirar pobres do Orçamento sem incluir ricos no Imposto de Renda, implodindo a alma de suas promessas eleitorais em 2022, como permite que se interprete o recado de Haddad que prioridades mudaram.

Há uma infinidade de possibilidades de revisar e cortar gastos em volumes consideráveis. Só em subsídios, isenções e abatimentos indevidos, beneficiando lobbies e grupos específicos, são mais de R$ 300 bilhões por ano, uma enormidade equivalente a 3% do PIB, que poderiam ser poupados pelo Estado.

Na mesma linha de raciocínio, só a isenção da taxação dos rendimentos com lucros e dividendos, atualmente isentos, que somam volume superior a R$ 1 trilhão por ano, representa uma perda de arrecadação estimada entre R$ 40 bilhões e R$ 150 bilhões, dependendo das alíquotas consideradas no cálculo.

Mas é quase impossível romper a muralha política que garante a captura dos recursos públicos por grupos de interesse, com o suporte de um Congresso em que a maioria representa esses interesses. Vide o incômodo produzido pela ideia de adotar uma taxação mínima de12% a 15% sobre rendas anuais superiores a R$ 1 milhão. A conferir se a promessa de cortar super-salários no serviço público, medida mais simbólica do que realmente efetiva para reduzir os déficits, conseguirá ser cumprida.

Lado mais fraco

Sobra mexer no lado mais fraco do conflito distributivo social, revisando ou cortando programas como BCP, FGTS, abono salarial, seguro desemprego e outros benefícios destinados aos mais pobres.

No caso dos programas sociais, mais até para evitar desperdício e mau uso de recursos escassos, o que se deveria esperar e exigir do governo é uma ação enérgica contra fraudes, múltiplos benefícios para uma só pessoa e inclusão indevida de beneficiários. Seria desejável também uma revisão cuidadosa em indexações de gastos públicos.

Uma área sensível, mas na qual uma reformulação de vinculações fiscais poderia resultar em economia, sem perda de recursos para a área, por exemplo, é a da educação pública. Atualmente, o piso das despesas com educação deve corresponder a 18% da RLI (receita líquida de impostos). Ou seja, o montante destinado à área varia a cada ano, conforme a arrecadação federal aumente ou diminua. Com o envelhecimento da população, seria mais lógico fixar um valor mínimo per capita para o conjunto em trajetória de redução de pessoas em idade escolar.

Existem caminhos para conter o déficit públicos e conter a escalada da dívida pública. A escolha não deveria fugir das dificuldades políticas, atingindo o lado mais fraco da corda.

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