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"Claude Lévi-Strauss não era um antropólogo de biblioteca", diz autor de livro sobre viagens do intelectual francês ao Brasil

16/10/2024 11h34

Os anos vividos no Brasil, entre 1935 e 1939, foram um marco na vida do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss. "Este foi o momento em que ele passa de um professor de filosofia e sociologia ao etnógrafo que viria a ser e se abrem novas possibilidades para as suas ambições intelectuais", diz Samuel Titan, organizador do livro "Claude Lévi-Strauss, os mais vastos horizontes do mundo", em tradução livre. A parceria com Augusto Calil foi publicada na França pela editora Chandeigne e Lima e contém dez textos inéditos do acadêmico sobre as transformações sociais e políticas do Brasil. Neles, Lévy-Strauss analisa, entre outros temas, o cubismo, o integralismo, relata grandes expedições e reflete sobre conceitos de grande interesse na atualidade.  

Maria Paula Carvalho, da RFI em Paris 

O livro lançado na segunda-feira (14) na Casa da América Latina (Maison de l'Amérique Latine) em Paris, aborda os anos em que Lévy-Strauss viveu em São Paulo, tendo a ambição de se tornar um grande pensador e intelectual, contextualiza Samuel Titan, em entrevista à RFI Brasil. "Esse livro tenta mostrar como esses anos em São Paulo são decisivos na conversão de um professor de filosofia e sociologia no etnógrafo e no antropólogo que ele viria a ser", diz o editor.  

Em uma de últimas entrevistas, Claude Lévi-Strauss disse que a sua temporada no Brasil havia sido uma das mais importantes de sua vida. Tanto pelo distanciamento e pelo contraste, mas principalmente pelos resultados profissionais.  

Samuel explica que os dois primeiros textos são o que poderia esperar de um professor francês instalado na metrópole. "Eles são ótimos textos, um sobre pintura e outro sobre política. E todos os outros oito, são textos de alguém que se lança a devorar a literatura antropológica sobre o novo mundo e que, na sequência imediata, se lança à pesquisa de campo", completa. "São os anos das duas grandes expedições. primeiro aos Kadiwéu e aos Bororo, e depois em 1938 aos, ao território dos Nambikwara", acrescenta. "São momentos decisivos, de formação e são ritos de passagem que se cumprem essencialmente no Brasil", continua o editor. 

Nascido na Bélgica, Lévy-Strauss é considerado o fundador da antropologia estruturalista, em meados da década de 1950, e um dos grandes intelectuais do século XX. Entre suas obras mais conhecidas está "Tristes Trópicos", um ensaio publicado em 1955 na França, pela Editora Plon.  

O livro organizado por Samuel Titan e Augusto Calil, agora lançado na França e que tem previsão de ser traduzido em português, em outubro de 2025, pela Editora 34, reúne reflexões feitas quando a carreira de Lévy-Strauss ganhava novos rumos, no Brasil. 

Do Cubismo ao fascismo brasileiro

"O primeiro texto se chama "O Cubismo e a vida cotidiana" (1935) e é um texto de reflexão estética, de perfeita atualidade e muito premonitório do que seria o pensamento do Lévi-Strauss sobre a arte, particularmente a pintura", diz Titan. "O segundo texto é um texto de política e sobre a emergência do fascismo no Brasil e ganha uma atualidade infeliz diante das coisas que acontecem hoje", observa o editor.  

No Rio de Janeiro, também em 1935, Lévy-Strauss escreve:

 

Mais adiante no texto, o pensador francês observa:

Ainda de acordo com o filósofo francês, no mesmo artigo:

Lévi-Strauss ainda observa que "o integralismo se parece com o fascismo italiano", mas se diferencia deste por "por suas ideias filosóficas, místicas e religiosas. Deus, Família e Pátria é o grito de guerra do integralismo", descreve Titan. Sobre todos os outros aspectos, "o programa integralista é um reflexo pálido dos fascismos europeus. A família é considerada a base, natural e biológica da sociedade, com controle moral do ensino, da imprensa, do teatro e do cinema", acrescenta.   

As expedições indígenas

Em outros textos, o antropólogo francês Claude Lévy-Strauss relata sua visita à tribo dos indígenas Bororo, no Mato Grosso, onde descreve a organização social do grupo. Ele também foca na vida social e familiar dos Nambikwara, da mesma região, e dos Kadiwéu. "Esse é o momento em que ele, enfim, tem de ir a campo, mas também se pôr à prova como etnógrafo e depois como antropólogo. O que chama muito a atenção é a qualidade da pesquisa etnográfica", analisa Samuel Titan. "Ele teve de fazer a primeira expedição nas férias universitárias porque o contrato que ele tinha com a Universidade de São Paulo (USP) não previa esse tipo de atividade. Ele era um professor que devia cumprir com o ensino da sua matéria durante o semestre. Então, a primeira expedição é muito breve e chama a atenção a riqueza do resultado", completa o editor do livro.

"O primeiro grande artigo etnográfico sobre a vida dos Bororo chama a atenção, na época, de gente que já estudava e tentava decifrar aspectos da vida social desse povo há muito tempo. Nós reproduzimos um trecho de uma carta em que um dos grandes especialistas da época, o etnólogo alemão instalado no Brasil Herbert Baldus, escreve: "poxa vida, passamos boa parte da vida tentando entender como funciona o sistema de parentesco Bororo e esse rapaz francês parece que decifrou tudo em duas ou três semanas", diz Titan. Para o organizador do livro, o trabalho é "de uma riqueza e de uma penetração intelectual que desmentem uma certa fama a respeito de Lévi-Strauss como um antropólogo de biblioteca, um antropólogo de gabinete", observa o editor. "Esse livro, entre outras coisas, mostra o Lévi-Strauss no campo, com talento e verve realmente ímpares", diz. 

Filmes feitos com a esposa Dina Dreyfus

A segunda parte do livro é dedicada a filmes feitos por Lévy-Strauss e a sua primeira esposa Dina Dreyfuss. "Nós damos aos leitores acesso a cinco filmes que foram salvos na Cinemateca Brasileira, dos seis encontrados em 1977 por Carlos Augusto Calil, quando ele estava na Secretaria de Cultura de São Paulo", explica Anne Lima, da editora Chandeigne e Lima. "São filmes feitos em 1936, no trabalho de campo junto aos Bororó e aos Kadiwéu. Há também um filme sobre um trabalho no coral de uma grande fazenda no Mato Grosso. Todos juntos, esses filmes somam mais ou menos 45 minutos. São filmes mudos, mas de uma beleza incrível", descreve a editora. 

Uma curiosidade é que Lévy-Strauss achava que a fotografia era uma perda de tempo, assim como as imagens, que não eram suficientes para contar o que ele via, segundo a obra recém-lançada. "Tem uma ambiguidade interessante. Numa certa ocasião, ele disse que quando você está fotografando ou filmando, deixa de observar as coisas. Por outro lado, ele diz que o cinema, os filmes etnográficos, lhe causavam tédio, que ele não se interessava, ainda que talvez isso soasse como uma heresia. Mas na verdade, quando você tem a ocasião de mergulhar nos arquivos iconográficos visuais do Lévi-Strauss, você se dá conta de que ele tem um trabalho permanente de registro visual por meio da fotografia", explica Titan, acrescentando que "a Biblioteca Nacional de Paris conserva desenhos admiráveis feitos por ele". Ainda de acordo com Titan, "no Mato Grosso, Lévy-Strauss mobilizou o pai, que foi com ele para o Brasil e se instalou em São Paulo, Raymond Lévi-Strauss, que era pintor, para que cuidasse das ilustrações dos primeiros artigos etnográficos. E ainda tem os filmes", completa.  

Para o editor brasileiro, trabalhar neste projeto foi uma oportunidade de olhar para o seu país. "Para mim, foi a ocasião de travar mais contato com um momento muito especial da cultura brasileira, o momento da efervescência modernista", diz. "Nós quisemos fazer desse livro um documento importante do grau em que o Lévi-Strauss participa disso, nos anos brasileiros. Ele não passa por São Paulo e dá adeus. Ele trava relações muito densas com a vida intelectual paulistana, especialmente com Mário de Andrade" conclui. 

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