HIV em transplantados: para advogados, estado deve ser responsabilizado
O estado do Rio de Janeiro e o laboratório PCS LAB devem ser responsabilizados por pacientes infectados com HIV, segundo advogados ouvidos pelo UOL.
O que aconteceu
Seis pacientes que receberam transplante de órgãos foram infectados pelo vírus no Rio de Janeiro. Os casos foram revelados inicialmente pela rádio BandNews FM e confirmados pelo UOL junto à SES-RJ (Secretaria Estadual de Saúde do Rio).
Exames feitos nos doadores apresentaram 'falso negativo'. Todos os testes foram realizados pela PCS LAB, de Nova Iguaçu (RJ), que havia sido contratada em caráter emergencial pela SES-RJ em dezembro do ano passado. Novos exames feitos pelo Hemorio comprovaram, porém, que as amostras estavam infectadas com HIV.
Considerando que estamos diante de um laboratório privado, que mantinha vínculo com o estado do Rio de Janeiro mediante de procedimento licitatório, a responsabilidade pelos danos sofridos por estes pacientes transplantados será avaliada de maneira objetiva e solidária. Ou seja, tanto o estado do Rio de Janeiro quanto o laboratório, independentemente de culpa, podem ser condenados solidariamente a pagar um montante indenizatório a estes pacientes. Samantha Takahashi, especialista em Direito Médico, Ética e Compliance
O estado deve responder sem a menor sombra de dúvida, mas o laboratório pode ser processado pelos pacientes prejudicados, pelas famílias, em razão desse erro absolutamente desumano que foi praticado. E o Ministério Público deve, com o rigor da Lei, requerer a prisão preventiva e a busca e apreensão de documentos para que se preserve todo o acervo probatório. Washington Fonseca, especialista em Direito Médico, vice-presidente para as Américas da rede BGI Global e sócio do escritório Fonseca Moreti Advogados
Pacientes que foram infectados podem entrar na Justiça com ação indenizatória por danos materiais, morais e existenciais. No Brasil, no entanto, não existe um sistema de tarifação para o valor indenizatório. O que o Judiciário leva em conta é a espécie e extensão dos danos sofridos. "Cada caso é um caso, com todas as suas particularidades, mas de forma geral, em casos similares, como a de infecção pelo vírus HIV em transfusões de sangue, as indenizações têm sido calculadas na média de R$ 200 mil a R$ 300 mil, mais juros e correção monetária", explica a advogada Samantha Takahashi.
- Danos materiais: montantes dispendidos em tratamento, medicamento, redução da capacidade laborativa;
- Danos morais: leva em consideração a dor, o sofrimento, a angústia, que estas pessoas sofreram com o diagnóstico e com todo o processo doloroso que enfrentarão daqui em diante;
- Danos existenciais: são os danos a um projeto de vida.
Especialistas ressaltam a importância de indenização não apenas aos pacientes transplantados. Todas as vítimas, infectadas em cadeia por estes pacientes, por manterem com eles um relacionamento, também podem ser eventualmente indenizadas.
Perícia e fechamento de laboratório
Juiz pode solicitar a perícia para fazer avaliação. Cada um dos citados deve passar por exame técnico para verificar nexo entre o transplante e a infecção por HIV e quantificar os danos. "[É preciso] entender a repercussão que eles têm atualmente em diversos órgãos e sistemas, até mesmo repercussões do ponto de vista psicológico, e tudo isso ser quantificado pelo perito, que vai conseguir, então, promover a melhor quantificação do que a gente chama de avaliação do dano corporal", ressalta Caroline Daitx, médica especialista em medicina legal e perícia médica pela USP (Universidade de São Paulo).
Laboratório PCS LAB pode ser fechado permanentemente. Segundo Washington Fonseca, além de ser inicialmente interditado (o que já aconteceu), o laboratório pode ser posteriormente fechado e os donos responderem a processo criminal por crime contra a saúde pública.
A contaminação dos pacientes pode fazer com que os proprietários do laboratório e demais responsáveis eventualmente respondam pelo crime de lesão corporal dolosa (art. 129 do Código Penal), caso se comprove que eles agiram intencionalmente ou assumiram o risco de produzir o resultado por meio de condutas tidas como impróprias para um laboratório de análises clínicas, ou lesão corporal culposa (art. 129, § 6º, do Código Penal), caso se comprove que eles agiram com negligência, imprudência ou imperícia com relação aos procedimentos laboratoriais e às análises. Matheus Falivene, doutor e mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da USP
A reportagem questionou a Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro e tenta contato com o laboratório por um posicionamento sobre a possível responsabilização pela infecção de órgãos transplantados. Se houver retorno, o texto será atualizado.
Episódio é considerado grave por autoridades
Caso foi descoberto após paciente passar mal. Ele havia recebido um coração nove meses antes e chegou ao hospital com sintomas neurológicos, segundo a BandNews FM. Exames foram feitos, e o paciente teve diagnóstico positivo para HIV.
O laboratório tem duas unidades no estado, em Nova Iguaçu e em Belford Roxo, segundo o site oficial da empresa. Os exames que apresentaram erroneamente "falso negativo" teriam sido feitos na unidade em Nova Iguaçu. Segundo o Ministério da Saúde, a unidade operacional do laboratório fica no IECAC (Instituto Estadual de Cardiologia Aloysio de Castro).
Todos os testes feitos pelo laboratório serão encaminhados para nova análise no Hemorio, hemocentro fluminense. Além da retestagem e da interdição do laboratório, o que já havia sido divulgado pela Secretaria de Saúde do Rio, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, também anunciou auditoria "urgente" pelo Denasus (Departamento Nacional de Auditoria do SUS) e assistência especializada aos pacientes e familiares.
Nísia Trindade classificou o episódio como "grave situação adversa". "Prestaremos toda a assistência a essas pessoas e a seus familiares, e quero, além da solidariedade, reforçar esse compromisso do Ministério da Saúde. Ao mesmo tempo, temos o compromisso de garantir a segurança, efetividade e qualidade que são marcas indiscutíveis do Sistema Nacional de Transplantes do Brasil."
Secretaria de Saúde do Rio confirmou que está realizando "um rastreio com a reavaliação de todas as amostras de sangue armazenadas dos doadores, a partir de dezembro de 2023, data da contratação do laboratório". Uma sindicância também foi instaurada para identificar e punir os responsáveis, segundo o órgão em nota enviada ao UOL.
A PCS LAB receberia quase R$ 11,5 milhões em um ano pelos serviços de "análise clínica e anatomia patológica" em unidades de saúde do estado do Rio de Janeiro. Segundo o contrato firmado em dezembro de 2023 com o governo estadual, seriam pagos R$ 9.799.836,03 ao laboratório pelos serviços, que durariam 12 meses. Em fevereiro de 2024, porém, foram incluídas outras duas unidades de saúde no contrato, e o valor foi reajustado em R$ 1.679.459,04. O total acordado ficou em R$ 11.479.295,07.