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'Minha terapia é procurar': o drama do pai que perdeu 2 filhos e busca o 3º

Sandro, ao centro, ao lado da mulher e dos três filhos: Júnior, à esquerda; Saulo e Samuel, à direita  - Arquivo pessoal
Sandro, ao centro, ao lado da mulher e dos três filhos: Júnior, à esquerda; Saulo e Samuel, à direita Imagem: Arquivo pessoal
do UOL

Do UOL, em São Paulo

26/09/2024 05h30

O mecânico Sandro Andrade, 57, e a esposa Maria, 62, convivem diariamente com as dores do luto e com um mistério.

Eles tiveram quatro filhos, mas perderam dois: em 1988, Sheila nasceu prematura e morreu com apenas 12 horas de vida. Já Saulo morreu em 2013, aos 23 anos, por suicídio.

Há 7 anos, o drama da família cresceu: o filho caçula, Samuel Gustavo, desapareceu aos 19 anos depois de ir a uma festa perto de onde morava, no Grajaú, zona sul da cidade de São Paulo.

Desde então, a vida do casal e do filho mais velho segue à espera de notícias, que nunca chegam.

Minha terapia, quando eu não estava aguentando mais, era pegar o carro e ir para as buscas. Isso limpava, lavava a minha alma.
Sandro Andrade

A formação da família

Depois que Sheila nasceu e morreu logo após o parto, o casal acreditava que não conseguiria ter mais filhos. "Mas dois anos depois veio o Saulo", lembra o pai.

O filho mais velho "estava fazendo faculdade, era professor de computação desde os 16 anos, muito religioso, tocava violão na igreja. Sempre muito alegre", contou ao UOL.

Sandro conta que sempre teve uma relação de amizade com os filhos, especialmente com o mais velho. Saulo tinha diabetes desde os 14 anos e usava insulina.

Poucos dias antes de morrer descobriu um glaucoma —doença que afeta o nervo óptico e pode levar à cegueira.

"Ele tinha feito uma bateria de exames e deu princípio da doença. A chefe dele comentou comigo que, dias antes do acontecido, chegou a encontrá-lo em uma sala, de olho fechado e luz apagada. Ela perguntou o que estava acontecendo e ele falou: 'Eu tenho muito medo de perder a minha visão e a minha inteligência'."

O filho "nunca demonstrou depressão", segundo o pai, e morreu em 19 de fevereiro de 2013 —depois disso, a família mergulhou no luto.

Desaparecimento sem explicação

Quase cinco anos depois, em 9 de dezembro de 2017, veio o novo baque: o desaparecimento de Samuel.

O pai conta que o filho mais velho e o caçula tinham personalidades opostas: um era extrovertido; o outro, muito tímido.

"O Samuel tinha uma leve dislexia, trocava a letra R, a letra L. Acho que por isso ele era muito reservado, não falava corretamente."

Com os atrasos causados pelo distúrbio, caracterizado pela dificuldade de leitura, o rapaz ainda estava terminando o ensino médio aos 19 anos, quando sumiu.

samuel gustavo - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
À direita, uma projeção de como Samuel Gustavo estaria hoje, aos 26 anos
Imagem: Arquivo Pessoal

Ânimo com habilitação

A semana que antecedeu o desaparecimento de Samuel foi marcada por boas notícias: ele conseguiu tirar a carteira de motorista e estava prestes a começar um curso novo.

O desaparecimento foi da sexta para o sábado. Ele pegou a habilitação na quinta-feira. Depois, descobriu que tinha passado no processo seletivo de uma escola profissionalizante, e ficou mais feliz ainda. Eu falei: nós vamos amanhã fazer a matrícula, quando eu chegar do trabalho. Mas ele rebateu: 'Pai, eu vou segunda-feira, já sou homem'.

Na sexta-feira, 8 de dezembro, um colega do filho foi até a casa da família e convidou Samuel para tomar um açaí.

O que era para ser um passeio simples terminou em uma ida a uma festa. A ideia era encontrar Júnior, o filho do meio de Sandro e Maria, três anos mais velho que o caçula.

"O Samuel não bebe, não fuma, tem poucas amizades. Depois que ele fez 18, começou a acompanhar o irmão em algumas festas, só que o próprio Júnior falava: 'Minhas amizades são diferentes das dele'. Ele [Samuel] ficava no cantinho, com uma Coca e às vezes uma menininha. Mas eles eram muito unidos também, acho que um 'passava pano' para o outro", diz o pai.

Samuel, à direita, foi encontrar o irmão Sandro Júnior, à esquerda, em uma festa perto da casa da família - Arquivo Pessoal  - Arquivo Pessoal
Samuel, à direita, foi encontrar o irmão Sandro Júnior, à esquerda, em uma festa perto da casa da família
Imagem: Arquivo Pessoal

Eles conversaram e marcaram de se encontrar na festa. O Samuel saiu do açaí e chegou na baladinha umas 22 horas, era pertinho de casa. Ele mandou mensagem para a mãe avisando que ia para a 'social'. Era um lugar em que eles já foram, com segurança e entrada paga.
Sandro Andrade, ao UOL

Na manhã seguinte, antes de sair de casa para trabalhar, Sandro cumpriu a rotina de dar uma "olhadinha" no quarto dos filhos.

Ao abrir a porta do quarto do caçula, ele não estava lá. O pai ficou ainda mais alarmado ao perceber que Júnior, que tinha o costume de virar noites nas festas, estava em casa dormindo.

"Eu acordei o Júnior e ele falou que o irmão estava conversando com uma menina e disse que vinha depois. Fiquei preocupado, mas não tanto, porque quando saí eram 4h30 da manhã. Aí eu vi um acidente próximo de casa, um corpo já coberto, e aquilo ali fez meu coração bater mais forte. Mandei recado para minha esposa, para que ela me avisasse quando o Samuel chegasse."

A aflição se estendeu por todo o sábado. Foram mensagens para amigos, familiares e convidados da festa —todos garantiram que Samuel não se envolveu em confusão durante a festa e saiu sozinho do local.

"Todo mundo se envolveu, procurando em IML, hospitais, fazendo contatos."

O irmão de Samuel teve a ideia de ir até a empresa de telefonia em que o caçula tinha cadastro, para tentar ver possíveis movimentações no celular —na festa, o rapaz tinha comentado com o mais velho que estava com o aparelho descarregado.

"Ele conseguiu resgatar o chip e não tinha ligação, não tinha mensagem, nada suspeito. O Júnior e um colega tiveram a ideia de ver as câmeras da vizinhança, na segunda-feira. Foi aí que descobrimos que ele tinha feito o trajeto de casa. Por volta das 2h30, ele passou praticamente em frente, a exatos 50 metros daqui."

Pegamos sete gravações. Pelo que vimos, ele aparentava estar em surto, porque as passadas são rápidas, como se ele estivesse atrasado para alguma coisa. Ele passa em um cruzamento sem olhar para os lados, poderia ser atropelado.
Sandro Andrade

Ao longo dos dias seguintes, a família do rapaz continuou buscando imagens pelos comércios da região, tentando traçar um mapa do caminho percorrido por ele após sair de perto da casa da família.

No fim, as câmeras não foram suficientes para saber o destino final de Samuel.

O caso ganhou uma investigação mais aprofundada da polícia. A mulher vista com ele durante a festa foi interrogada e contou que o rapaz disse que "não estava bem".

samuel e sandro - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Sandro Júnior, Samuel e Saulo
Imagem: Arquivo Pessoal

A testemunha não falou nada sobre o uso de drogas ou bebidas, mas o pai do jovem não descarta que isso tenha acontecido —inclusive sem o conhecimento do filho.

"Já me falaram que algumas pessoas da festa usavam essas 'balinhas'. De repente, por ele ser mais 'paradão', foram fazer uma brincadeira e aconteceu isso (ele entrar em surto)."

Celular foi vendido por rede social

Dez meses depois do desaparecimento, a polícia descobriu que o celular de Samuel foi vendido por uma rede social um dia depois da festa. O autor do anúncio não foi identificado até hoje.

O cara vendeu dizendo que estava com o celular há muito tempo e ia comprar um novo, cobrou R$ 250. Só que esse aparelho foi mudando de mãos e sendo formatado. Eu até arrumei alguém para tentar resgatar os dados, mas ele não conseguiu.
Sandro Andrade

Ao longo dos últimos sete anos e nove meses, a família já recebeu inúmeras pistas falsas sobre o paradeiro do caçula. E Sandro continua peregrinando pelo Brasil em busca de novas informações.

"Andei pelo interior de São Paulo inteiro. De tempos em tempos, eu vou, fico dois dias fora, mostrando a foto dele. Eu tenho contato com outras famílias de desaparecidos e já fiz divulgação em Santa Catarina, Curitiba, Rio de Janeiro."

Na capital, depois de esgotar as buscas na zona sul, ele andou por algumas favelas e foi até mesmo à Cracolândia —lá, ele ajudou uma família do Rio a localizar um filho, que estava na região conhecida por concentrar usuários de drogas.

"Você começa a esgotar as opções. A partir do momento em que ele foi para a rua, ele pode ter perdido toda a referência. Algo aconteceu e a gente não sabe o que é, temos de pensar em todas as possibilidades."

samuel gustavo - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Samuel Gustavo foi visto andando pelas ruas ao lado da casa da família
Imagem: Arquivo Pessoal

Como família convive com a incerteza

A incerteza sobre o paradeiro do rapaz, que fez 26 anos em 11 de maio, abalou a estrutura da família.

A mãe tem depressão e toma uma série de medicamentos. Ela e Júnior têm acompanhamento psicológico.

Ela já não estava bem com a morte do Saulo, até 'pegou' diabetes emocional. E, com a questão do Samuel, não dorme mais direito. Já meu filho está bem, mas se sentiu um pouco culpado porque eu cobrava de sair junto [com o irmão], voltar junto, isso martelou um pouco mais na cabeça dele, por mais que eu tentasse tirar.
Sandro Andrade

Já Sandro enfrentou um problema na coluna que exigiu uma cirurgia e o afastou do trabalho por quase três anos. Ele conseguiu voltar à rotina somente no último mês de agosto.

Agora, tento me distrair com o trabalho, porque é de segunda a sábado. Saio antes das 6h para voltar às 20 horas.
Sandro Andrade

Informações

Samuel tem cerca de 1,75 metro de altura, é magro, branco e não tinha tatuagens. Antes de desaparecer, usava óculos. Qualquer informação pode ser compartilhada no Disk Denúncia, pelo número 181.

O jovem foi visto pela última vez na madrugada de 9 de dezembro, andando sem rumo nos arredores da casa da família, mas nunca chegou a entrar na residência e sumiu completamente.

Procure ajuda

Caso você esteja pensando em cometer suicídio, procure ajuda especializada como o CVV (Centro de Valorização da Vida) e os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil.

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