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Mulheres são a maior barreira de contenção da extrema direita nas eleições

Grupo em Mauá (SP) estendem faixa em memória aos três anos do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco - ROBERTO SUNGI/ESTADÃO CONTEÚDO
Grupo em Mauá (SP) estendem faixa em memória aos três anos do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco Imagem: ROBERTO SUNGI/ESTADÃO CONTEÚDO
do UOL

Rosana Pinheiro-Machado

Colunista convidada

26/09/2024 05h30

As mulheres têm sido, consistentemente, a maior barreira de contenção contra a extrema direita no Brasil e no mundo.

Nas duas eleições presidenciais em que Bolsonaro concorreu, as mulheres — e principalmente as mulheres negras — foram a principal oposição. Muitos acreditaram que isso se devia exclusivamente ao Bolsa Família, recebido diretamente pelas mulheres. Não é errado afirmar que o benefício social é uma parte importantíssima desse fenômeno político, mas ele não explica, por exemplo, as eleições municipais. A última pesquisa do Datafolha aponta uma "rejeição galopante" à figura de Marçal entre 53% das mulheres.

A rejeição ao conservadorismo e ao autoritarismo é um fenômeno global. Dados recentes, levantados pelo grupo Gallup e publicados no New York Times, mostram que, em 2001, homens e mulheres jovens nos Estados Unidos tinham preferências políticas semelhantes, ambos relativamente mais progressistas. A partir de Trump em 2016, mulheres de 19 a 29 anos começaram a se tornar cada vez mais progressistas; os homens, por outro lado, cada vez mais conservadores.

As mulheres rejeitam cada vez mais Trump por várias razões: as crescentes denúncias de assédio sexual no país, os ataques misóginos a Hillary Clinton e, mais recentemente, o retrocesso do caso Roe vs. Wade, que retirou a garantia constitucional do direito ao aborto. Do outro lado da moeda, o mesmo jornal americano mostrou que, pela primeira vez, pesquisas indicam uma inversão de tendências: os homens estão se tornando mais religiosos do que as mulheres naquele país.

Se na coluna passada escrevi sobre o recrudescimento do conservadorismo, o outro lado da moeda é que o feminismo, paralelamente, é a maior força política do século 21, tanto em termos de capilaridade quanto em termos de poder de influência, se contrapondo à expansão da extrema direita no mundo.

Existe uma tendência à clivagem de gênero na chamada "polarização". Mulheres, historicamente silenciadas, assediadas e assassinadas, buscam autonomia — e elas não voltarão atrás. Enquanto isso, o patriarcado tenta se manter como força hegemônica. Em certo desespero, busca cada vez mais no fundamentalismo religioso e político a violência necessária para manter o poder.

Não é à toa que, quanto mais a campanha de Marçal escala em assédios, ataques e violência, mais as mulheres o rejeitam. Todas as tentativas do candidato de reverter isso superficialmente são frustradas porque a dor da violência de gênero é algo que as mulheres sentem na alma e na pele, por mais clichê que essa frase soe.

Digo isso porque, em todos esses anos estudando o avanço do conservadorismo e do autoritarismo entre as "pessoas comuns", aprendi com tantas mulheres, especialmente negras e periféricas, que a muitas delas, ao contrário das mulheres brancas e de classe média, às vezes não conseguem — ou não querem — nomear as razões pelas quais repudiam figuras como Bolsonaro ou Marçal. É comum ouvir: "É algo que sinto, não sei explicar".

Mas é claro que elas sabem.

Na eleição de Bolsonaro em 2018, elemento Bolsa Família fez a diferença na rejeição. Eu e minha colega Lúcia Scalco percebemos que o vínculo entre o voto e a memória da transformação causada pelo programa ainda era forte. Lembro de uma mulher que disse: "Antes, ele vinha bêbado, batia, e eu não podia fazer nada. Agora, eu o expulso de casa", referindo-se à autonomia financeira alcançada.

Por outro lado, também sempre me deparei com algo que muitas vezes é considerado inominável: mulheres que simplesmente sentem repulsa, fazem caretas, cara de nojo, dizem "Deus me livre desse homem" e encerram a explicação aí. Quando buscamos entender mais a fundo, elas recorrem a várias razões: uma fala misógina do político, o medo das armas, um verdadeiro horror à violência que esses homens representam e que elas sabem que só traz desgraças.

Afinal, o homem-machão nunca trouxe harmonia para as famílias dessas mulheres; apenas tragédias. Muitas dessas delas, inclusive, são casadas com apoiadores de extrema direita e dizem detestar e não entender de política. Mesmo com toda a influência dos maridos e, às vezes, da igreja, elas seguem firmes e constantes: "Deus me livre desse homem".

No entanto, nenhum processo é fixo, sendo fundamental observar outras tendências menos animadoras para além da clivagem. Afinal de contas, nunca haverá um lugar confortável para as mulheres.

A rejeição feminina a Bolsonaro foi maior em 2018 do que em 2022. Mais de 20 anos após a criação do Bolsa Família, as filhas e netas da primeira geração que teve sua vida transformada já estão perdendo a memória dessa revolução cotidiana.

Da última eleição presidencial para cá, o fenômeno do marketing digital cresceu, e não foram poucas as mulheres periféricas que encontramos dizendo rejeitar Bolsonaro, mas admirando profundamente Marçal como alguém "de família", que inspira no sonho de uma renda extra para uma vida mais próspera. As igrejas neopentecostais também avançam no país, oferecendo acolhimento para mulheres de diversas formas.

Por isso, o feminismo não apenas precisa continuar dialogando com todas as mulheres, como também é necessário avançar em políticas públicas robustas com um desenho interseccional que consigam oferecer alternativas de futuro.

Rosana Pinheiro-Machado é antropóloga e professora titular da Universidade de Dublin (UCD) e diretora do Digital Economy and Extreme Politics Lab (DeepLab)

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