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"Democracia é um trabalho de todos os dias", diz Sandra Kogut em Biarritz ao apresentar filme sobre invasão do STF

26/09/2024 13h39

Filmado durante os meses tumultuados que antecederam as eleições presidenciais brasileiras e a tomada do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF), em 8 de janeiro de 2023, "No céu da pátria neste instante", de Sandra Kogut, examina esses acontecimentos através do olhar de diferentes personagens. A RFI Brasil conversou com a diretora no Festival de Cinema Latino-Americano de Biarritz, onde a produção brasileira concorre ao prêmio de melhor documentário. 

Maria Paula Carvalho, enviada especial da RFI a Biarritz

RFI: Como nasceu a ideia para este documentário? 

Sandra Kogut: No calor dos acontecimentos, ninguém tinha muita ideia do que ia acontecer, mas sabia que o que acontecesse ia ser muito importante para todos nós, brasileiros. E como as eleições e o sistema eleitoral estavam sendo muito atacados naquele momento, eu pensei em pegar pessoas que estavam envolvidas com as eleições de alguma maneira, mas não aquelas que a gente está acostumado a ver na frente das câmeras. Ou seja, não os candidatos ou pessoas públicas, mas as que trabalhavam ou que estavam em algum tipo de bastidor, que tivessem alguma conexão mais forte com o processo eleitoral.

Eu fui procurando pessoas muito diferentes pelo Brasil todo e também queria pessoas diferentes em termos do espectro político. Foi difícil, mas os personagens são bem variados, estão em lugares diferentes do Brasil e também têm opiniões diferentes.

RFI: Na descrição do filme para o público internacional em Biarritz, diz que ele combina dimensões pessoais e políticas, examinando num contexto em que a extrema direita estava no poder, em que a democracia estava ameaçada, como dois mundos paralelos lutam para se compreender. Você pode explicar melhor que mundos são esses?

Sandra Kogut: Esse filme não é uma análise. A gente vai avançando no filme com os acontecimentos. E eram realmente realidades paralelas. A gente tem dois personagens que eram bolsonaristas durante as eleições e os vídeos que eles consumiam, as notícias que eles consumiam eram inacreditáveis.

Logo eu fui entendendo que, na verdade, era um filme sobre o medo, sobre a enorme tensão que a gente estava vivendo, independente de que lado você estivesse. Eu não queria convencer eles de nada. E o filme é sobre essa impossibilidade de realmente fazer essa ponte se comunicar. 

RFI: Quase dois anos depois, o Brasil continua muito polarizado. Como você acha que o documentário vai ser recebido?

Sandra Kogut: Esse filme registra um momento específico, mas a sensação que eu tenho é que quanto mais o tempo passa, mais camadas ele ganha. O que o filme conta não desapareceu, continua aí. E essas pessoas estão aí. O que eu percebo é que você, de alguma maneira, revive o seu filmezinho também daquele momento.

Eu ainda percebo que ele conversa muito com outros países porque, infelizmente, isso que a gente viu acontecer no Brasil está acontecendo em muitos lugares. Então, quando eu mostro ele em algum outro país, o que eu vejo é que a pessoa se reconhece ali, se identifica, que é essa ascensão da extrema direita.

RFI: Você faz alguma relação com a invasão do Capitólio nos Estados Unidos? 

Sandra Kogut: As relações estão todas ali, mas quem faz essas relações é o público. E aí o público americano, espanhol, português, francês vai reconhecendo naquela história coisas do seu próprio país, porque é muito parecido. A extrema direita tem uma cartilha: você reconhece métodos e maneiras de fazer as coisas que estão se repetindo mundo afora. Não é uma invenção do Brasil. 

RFIO Supremo Tribunal Federal determinou penas muito duras para algumas dessas pessoas que invadiram a Praça dos Três Poderes. O filme mostra o fim desse processo?Os julgamentos e o que aconteceu depois?

Sandra Kogut: O problema desse filme é que eu estaria fazendo ele até hoje se eu fosse mostrar o que aconteceu depois. Teve uma hora que eu tive que finalizar. Eu gosto muito quando você olha por um momento e você sabe o que vai vir depois, mas os personagens não sabem ainda, porque aí o filme se torna que nem uma cebola. Quanto mais as coisas vão acontecendo, mais camadas esse filme vai ganhar.

Ele se tornou realmente um filme sobre o golpe, entendeu? Sempre foi um filme que não ia ter um suspense, porque a gente já ia saber o resultado da eleição. Mas é muito interessante porque o filme volta no tempo e você percebe o quanto aquilo já estava anunciado. As notícias eram tão absurdas que o escândalo dessa semana apagava o da semana passada. Você não conseguia manter um fio da meada porque você era massacrado por notícias absurdas constantemente. Foi um pouco também o que me deu vontade de fazer o filme, de criar uma espécie de arquivo do presente.

Processo eleitoral brasileiro: "quase um milagre"

RFI: Aqui em Biarritz, o diretor Walter Salles, que apresentou o filme "Ainda estou aqui" sobre o período da ditadura militar no Brasil, disse que a democracia é uma matéria muito frágil. Você concorda? E você teme pela estabilidade da democracia brasileira?

Sandra Kogut: Sim, eu acho que essa é uma das grandes lições desse momento, porque a gente achava que algumas coisas estavam estabelecidas, estavam ganhas, e que a gente ia dali para frente. E de repente, vimos como podemos andar para trás muito rápido e brutalmente. Então, é claro que a democracia é um trabalho de todos os dias de uma sociedade. Mas eu também acho que esse filme mostra a democracia sendo feita.

A gente aprende muito sobre o processo eleitoral. Tem uma personagem, por exemplo, a Rute, que é juíza eleitoral na Ilha de Marajó. Ela manda a urna para o meio da Amazônia. Você vê várias pessoas que trabalham nas eleições e entende como aquilo é quase um milagre do Brasil. O sistema eleitoral brasileiro é complexo e fascinante. A democracia parece uma coisa muito grande, abstrata. Eu quis mostrar o trabalho de formiguinha que é fazer a democracia acontecer numa eleição.

RFI: As urnas eletrônicas que são colocadas em discussão já elegeram a esquerda e a direita no Brasil e até hoje existe essa ideia de que elas podem provocar fraude. O que o documentário descobre sobre isso?

Sandra Kogut: Quando eu resolvi fazer esse filme, eu tive acesso a coisas que a gente não teria normalmente, porque o o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que estava sob ataque, percebeu que era importante mostrar. Eu tive acesso aos bastidores do trabalho de cartórios, juízes eleitorais, pessoas que estavam vivendo com muito medo, porque a campanha que o Bolsonaro fez de desinformação, de ataque às urnas, era tão monumental que, de repente, aquele sistema que era exemplar, nunca teve fraude comprovada, que é um sistema brasileiro e que todo mundo aceitava, ficou completamente sob ataque.

E isso também abriu as portas para a gente fazer o filme. A gente teve acesso a coisas que normalmente não teria. A argumentação se impõe por ela mesma, pois você vê como funciona. Eu, inclusive, aprendi muitas coisas que eu não sabia fazendo esse filme.

RFI: Por que o título "No céu da pátria neste instante", um verso do nosso hino nacional?

Sandra Kogut: Nesse momento, de extrema direita crescendo, de fascismo crescendo, os valores e os símbolos nacionais são a primeira coisa que a gente perde, pois eles passam a ser monopólio desse campo político. E o Hino Nacional era um deles. Então, eu achei que seria interessante pegar um desses símbolos da pátria e usar de outra maneira.

Essa frase descrevia muito bem uma sensação que eu tinha de que a gente está preso no eterno presente, como se a gente só conseguisse ver em instantes, como se fosse impossível dar um passo para trás e criar uma linha narrativa que fizesse sentido. Então, eu achei que era um bom título.

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