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Pablo ou Pavel? Conheça a história do espião russo que se passava por repórter na Espanha

25/09/2024 14h26

Pablo González era um repórter atípico: trabalhava em um pequeno jornal regional espanhol mas, no entanto, conseguia fazer coberturas dignas de grandes veículos de comunicação. Além disso, tinha acesso a fontes russas privilegiadas. Pablo González é, na verdade, Pavel Rubtsov, um espião russo infiltrado, que atuava como jornalista.

Xavier Colás, correspondente da RFI na Estônia

Pablo González sempre foi um jornalista diferente. Escrevia para um pequeno jornal regional no norte de Espanha, mas continuava atuando em uma grande cobertura internacional, realizada, normalmente, apenas pelos grandes meios de comunicação. Tinha opiniões muito contrárias às da Ucrânia e próximas ao Kremlin, e ano após ano tornou-se cada vez mais íntimo de dissidentes russos no exílio ou daqueles em visita ao exterior.

Falando um russo perfeito e tendo fontes locais, ele publicava frequentemente notícias falsas que só um novato seria capaz de publicar. Ele usava cartões de crédito russos que não eram seus, morava com a namorada na Polônia, mas tinha uma esposa em Bilbao. E, embora tivesse passaporte russo, não contava isso a quase ninguém e até perguntou aos dissidentes russos como poderia obter um visto do qual não precisava.

Muito desse cenário obscuro começou a se esclarecer em 28 de fevereiro de 2022, nos primeiros dias da invasão em grande escala da Ucrânia. Enquanto o mundo assistia com surpresa à destruição das cidades que Pablo González visitou como enviado especial, ele foi detido na Polônia.

As autoridades polonesas o acusaram de espionar para a Rússia. Em seus dispositivos eletrônicos encontraram relatórios preparados por ele sobre uma série de membros da oposição. Ali estava também a correspondência com seus chefes e até dados roubados de computadores que não lhe pertenciam. Semanas antes, ele havia sido interrogado na Ucrânia durante sua última cobertura. Lá copiaram o conteúdo de seu telefone, mas González continuou agindo normalmente.

Agentes poloneses divulgaram o nome encontrado em seu passaporte russo: Pavel Rubtsov. Muitos de seus conhecidos ouviram a informação pela primeira vez. O governo espanhol prestou-lhe assistência consular, mas sempre evitou fazer comentários em sua defesa.

Mãe espanhola e pai russo

Os serviços de inteligência têm um termo para descrever casos como o do jornalista: "lenda". É a biografia fictícia de um oficial de inteligência, em que as mentiras são mascaradas por fatos verdadeiros. Um álibi que dura anos, com memórias falsas e parentes inventados.

Mas González-Rubtsov não teve de fingir ser espanhol: na verdade ele nasceu numa família de imigrantes espanhóis. Seu avô, Andrés González Yagüe, fugiu para a URSS ainda criança durante a Guerra Civil Espanhola. A filha do exilado Yagüe, María Elena González, casou-se com o soviético Alexey Rubtsov.

Seu filho, Pavel Rubtsov, nasceu em Moscou em 1982. Após o divórcio, com a queda do Muro de Berlim e em meio ao colapso da URSS, María se mudou para a Espanha com o filho e mudou seu nome legal para Pablo González Yagüe. Essa dupla identidade seria, anos mais tarde, juntamente com a língua, um grande trunfo aos olhos dos serviços secretos russos.

Mais tarde, González-Rubtsov esconderia o fato de ter usado dois nomes desde a infância. Ele obteve um passaporte russo em 2016, mas também manteve isso em segredo. Frequentemente compartilhava fotos de suas viagens pela antiga União Soviética, mas, por alguma razão, mal divulgou que visitava regularmente o pai em Moscou.

O espião sedutor

Sempre surpreendeu entre seus colegas que um freelancer como ele conseguisse dinheiro suficiente para realizar coberturas que envolvem longas estadias em hotéis, diversas passagens aéreas e equipamentos de gravação.

Na primavera de 2023 (no hemisfério norte), a publicação Agentsvo, citando duas fontes próximas à investigação, falou detalhadamente sobre os relatórios que Rubtsov enviou ao GRU, o serviço de espionagem do Exército russo. Neles, ele escreveu sobre seus conhecidos, especialmente pessoas do círculo da opositora russa Zhanna Nemtsova, e sobre o que estava acontecendo nas conferências europeias. Foi convidado para alguns deles graças ao relacionamento que cultivou. Além disso, viajou pela Rússia no mesmo avião que um comandante, espião russo do GRU (eles até compraram passagens juntos).

Segundo a investigação, Pablo González (ou Pavel Rubtsov) teria espionado para o Kremlin de abril de 2016 a fevereiro de 2022, quando foi preso na fronteira com a Polônia.

Zhanna Nemtsova, filha do dissidente assassinado Boris Nemtsov, que Pablo González conheceu em Bruxelas em 2016 num evento ligado à Fundação que dirige em nome do pai, foi alvo prioritário da espionagem do jornalista. 

Ele se envolveu romanticamente com ela e, assim, extraiu e-mails de um computador antigo que ela tinha em casa. Estes eram e-mails de seu pai. Como explicou a comitiva de Nemtsova após uma entrevista ao 'El Mundo', os e-mails não tinham grande valor, mas o fato de terem aparecido no dispositivo de Pablo González "é muito significativo".

Entre as informações que tinha nos seus dispositivos estavam relatórios sobre dissidentes como Ilya Yashin, que conheceu numa mesa redonda organizada em Madri por um grupo de reflexão. Yashin conheceu Pablo González em uma de suas viagens pela Europa. Eles se deram bem e até foram ao futebol e às compras juntos. "Não creio que ele tenha extraído de mim algo significativo, mas sim um perfil psicológico", explica Yashin, que está convencido de que o leve sotaque que tinha ao falar russo era falso. "Talvez ele não tenha tido acesso a nada crucial, mas muitas coisas que nos parecem superficiais para a espionagem russa são muito importantes", argumentam da fundação de Zhanna Nemtsova.

A troca

Durante o tempo em que Pablo González permaneceu na prisão polonesa, ele se tornou um símbolo para alguns setores de esquerda que o apresentavam como vítima da repressão à liberdade de expressão por não se conformar com o discurso dominante crítico à Rússia.

Em 1º de agosto, ocorreu em Ancara uma troca de prisioneiros em grande escala entre a Federação Russa e os países ocidentais. Como parte da troca, a Rússia libertou 16 pessoas, incluindo os presos políticos Vladimir Kara-Murza, Ilya Yashin, Oleg Orlov e outros; e também os jornalistas norte-americanos Evan Gershkovich e Alsou Kurmasheva; bem como cidadãos alemães condenados a diversas penas na Rússia e na Bielorrússia.

Dez pessoas retornaram à Rússia: agentes dos serviços especiais russos, seus dois filhos, golpistas cibernéticos e Vadim Krasikov, assassino do serviço de segurança do FSB. Junto com eles, Pablo González também 'regressou' à Rússia e não reivindicou a sua inocência. Ele não voltou à Espanha nem falou com a mídia espanhola. Seus apoiadores passaram da campanha por ele ao silêncio.

O último serviço

Duas semanas após a troca de prisioneiros entre a Federação Russa e o Ocidente, as autoridades polonesas finalmente apresentaram acusações de espionagem pública e oficialmente. Em Varsóvia, a sua libertação é uma questão controversa porque a Polônia não conseguiu a libertação de nenhum dos seus cidadãos presos na Rússia ou na Bielorrússia: foram os países terceiros que se beneficiaram.

O último escândalo envolvendo o jornalista está relacionado com as informações a que teve acesso devido à sua detenção. Pouco antes de ser entregue a Moscou, ele pôde ler todas as provas recolhidas durante a investigação, mesmo as confidenciais. A oposição polonesa denuncia que lhe foi dado um "presente" para prestar um último serviço a Moscou antes de deixar a Europa.

Fontes próximas a González confirmam que ele exerceu o direito de conhecer o material do processo, conforme estipula o Código Penal. Isto foi reconhecido pelo porta-voz do Ministério Público para o veículo Rczeczpospolita. É provável que estes arquivos de investigação incluíssem informações valiosas para a inteligência russa", disse Piotr Niemczyk, antigo alto funcionário da inteligência polonesa, em declarações publicadas pelo El Independiente.

Na Espanha, a esposa de Rubtsov-González, Oihana Goirien, mesmo após a troca de espiões por presos políticos, manteve numa entrevista que o seu marido é um jornalista comum. Mas no dia seguinte à troca - um dia histórico em que Vladimir Putin recebeu os russos libertados na pista do aeroporto e até apertou a mão de González - o diretor do Serviço de Inteligência Estrangeira (SVR) da Rússia, Sergei Naryshkin, comentou sobre o retorno dos espiões russos: "Nós nos reunimos com os nossos colegas, eles estão na sua terra natal e vão precisar descansar um pouco. E seguir trabalhando."

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