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Meta fiscal está perto, mas mercado quer ajuste diferente, diz especialista

O economista Manoel Carlos Pires, pesquisador da UnB (Universidade de Brasília) e do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas) - Divulgação/Ibre
O economista Manoel Carlos Pires, pesquisador da UnB (Universidade de Brasília) e do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas) Imagem: Divulgação/Ibre
do UOL

Colunista do UOL

25/09/2024 10h40

As medidas de contenção de gastos anunciadas pelo governo nesta sexta-feira (20) e detalhadas na segunda-feira (23), com base na evolução de despesas e receitas ao longo de 2024, foram acompanhadas por uma artilharia pesada da parte de analistas econômicos, principalmente do mercado financeiro.

Diante das projeções de rombo efetivo nas contas públicas primárias em torno de R$ 70 bilhões, dos quais cerca de R$ 40 bilhões estão fora dos gastos considerados para cumprimento da meta de déficit zero neste ano, choveram críticas à redução do contingenciamento imposto aos gastos em R$ 1,7 bilhão, reduzindo-o de R$ 3,8 bilhões para R$ 2,1 bilhões.

Essas críticas foram intensificadas pelas desconfianças de que o governo não é capaz nem dispõe de determinação para promover ajustes fiscais. Isso mesmo depois de o secretário-executivo da Fazenda, Dario Durigan, ter anunciado o cumprimento das metas fiscais e das regras do arcabouço "a qualquer custo" em 2024.

Nesse ambiente deteriorado por incertezas, muitas delas verdadeiras, mas também por um viés fiscalista extremo e anti-governo Lula de grande parte dos críticos, uma voz mais ponderada, e com reconhecido conhecimento do tema fiscal, precisa ser ouvida.

O economista Manoel Carlos Pires, pesquisador da UnB (Universidade de Brasília) e do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas), é referência brasileira em assuntos fiscais. Organizador do Observatório de Política Fiscal, do Ibre, e coordenador do CPFOP (Centro de Política Fiscal e Orçamento Público), também do Ibre-FGV, se posiciona no meio do caminho entre fiscalistas e aqueles para os quais "gasto é vida".

O economista, ex-chefe da Assessoria Econômica no Ministério do Planejamento em 2015, e coordenador de Política Fiscal na SPE (Secretária de Política Econômica) no Ministério da Fazenda entre 2008 e 2010, também tem experiência prática na formulação e condução de políticas públicas.

Para Pires, a redução do contingenciamento já era esperada e essa é uma discussão que ficou enviesada. "Por sua natureza, contingenciamentos devem ser usados para ajustes pequenos nos gastos, visando cumprir metas fiscais", diz ele. "Para cortes de grandes volumes, o caminho são reformas."

Pires também acredita que o governo está cada vez mais perto de cumprir as regras do arcabouço em 2024, "mas no limite, sem nenhuma folga". A crítica dos analistas, segundo ele, reside no fato de que o governo está buscando receitas pontuais e até incertas para fechar a conta, ao mesmo tempo em que tem evitado ampliar cortes de gastos.

Pode ser, segundo ele, o caminho possível, se forem considerados os compromissos políticos do governo, mas é uma escolha pelo curto prazo, que prolonga incertezas nos anos à frente. "Entre tantas reformas, está fazendo falta uma reforma no processo de definição do Orçamento", diz Pires

A soma de experiências, que levou Pires a construir uma visão mais equilibrada da crucial questão fiscal, transparece nesta entrevista exclusiva ao UOL, cujos principais trechos seguem abaixo.

O que chama mais a atenção no relatório e na decisão de reduzir o contingenciamento?

Quando fez o Orçamento, o governo apresentou uma série de medidas de esforço fiscal para cumprir a meta de Orçamento equilibrado. Durante 2024, aprovou muitas medidas, algumas delas estão gerando arrecadação, que está crescendo bastante, mas em alguns pontos também tem havido frustração grande em receitas.

Ao longo do ano, o governo está substituindo essas frustrações por arrecadação que está vindo de crescimento econômico mais alto, aumento de dividendos de empresas e instituições públicas ou de economia mista, e agora incorporou as compensações pela desoneração da folha de pagamentos de alguns empresas, numa negociação com o Congresso.

Com isso, o resultado fiscal está se aproximando da meta, o que muita gente achava improvável.

Como se deve avaliar a situação fiscal agora, mais perto do fim do ano?

Tem um lado copo meio vazio e um lado copo meio cheio. No lado meio vazio, possivelmente a meta será cumprida, mas o déficit não será tão pequeno, até porque gastos importantes ficaram de fora da contabilidade da meta.

O déficit efetivo, segundo meus cálculos preliminares, deve ficar em torno de R$ 50 bilhões, abaixo dos R$ 70 bilhões que o mercado está prevendo. Ficam de fora da meta despesas importantes, que deveriam mesmo ficar de fora da meta, como as do socorro ao Rio Grande do Sul, orçadas perto de R$ 30 bilhões, ainda não de todo desembolsadas. Tem também tudo que deverá ser gasto com essa seca severa e espalhada pelo país, que também não deveria estar dentro do Orçamento.

Enfim, o déficit primário, no final, tudo incluído, não será tão pequeno, mas a percepção de que o déficit será maior do que a realidade vem dessas despesas extraordinárias fora do resultado primário e de algumas medidas de arrecadação pontuais que são polêmicas, como a questão dos depósitos judiciais.

E o lado meio cheio do copo?

O governo fez um planejamento que não aconteceu exatamente como o esperado, mas os eventos do ano, inclusive o crescimento econômico mais forte, ajudarão o governo a ficar próximo da meta.

De qualquer forma, a tendência é o cumprimento das regras do arcabouço fiscal?

Acho que o governo está cada vez mais perto. Ainda tem coisas para ficarem mais claras, algumas previsões de arrecadação que ainda precisam se confirmar, mas é possível que o arcabouço seja cumprido no limite, sem nenhuma folga.

Se a meta de déficit fiscal zero em 2024 caminha para ser alcançada, por que as críticas, principalmente de analistas do mercado financeiro, continuam fortes?

O mercado financeiro gostaria que o equilíbrio fosse alcançado de outra maneira. Gostaria que fossem feitos mais cortes em gastos do que forçar aumentos de arrecadação, muitas vezes pontuais.

Um dos pontos criticados no relatório de despesas e receitas do quarto bimestre foi a reversão de parte do contingenciamento de recursos, em lugar de ampliar o contingenciamento. A preferência seria por focar mais em corte de gastos do que depender de receitas por muitos consideradas incertas.

Essa reversão no contingenciamento foi ou não um equívoco?

Na minha visão era esperada. O contingenciamento é uma medida de redução de despesas, para as ocasiões em que o governo percebe que não terá recursos para cumprir a meta fiscal, observa a insuficiência financeira e contingencia.

Outra forma de reduzir despesa é o que está sendo chamado de bloqueio. O bloqueio de despesa decorre da previsão de que os gastos vão estourar os limites do arcabouço.

O que foi feito agora foi uma ação em duas frentes. Uma redução pequena no contingenciamento porque as receitas foram revistas para cima e um pequeno aumento no bloqueio, principalmente porque a despesas com a Previdência está crescendo mais do que o esperado. Neste contexto, a decisão de reduzir o contingenciamento e ampliar o bloqueio, em doses pequenas nos dois casos, era a que devia mesmo se esperar.

De onde então vem a surpresa dos analistas?

Pessoas que estão fora do governo superestimam um pouco o papel do contingenciamento na gestão do gasto público. Há uma certa distorção no papel do contingenciamento. O contingenciamento foi criado como instrumento para ajustar gastos na margem, não para promover uma contenção de gastos de grandes proporções. Para uma reversão em grandes proporções é preciso fazer reformas nos gastos públicos.

Por que então esse tipo de crítica prevalece entre os analistas de mercado?

Um dos aspectos que eu gosto de destacar é que a discussão do problema fiscal se limita a visões de curto prazo, tipo como vai ser o Orçamento no ano que vem e se o governo vai cumprir ou não as metas e regras que estabelece.

Quando a discussão do contingenciamento esquenta, estamos gastando energia com controle de mais ou menos 10% do Orçamento, e deixando para lá os outros 90%. De outro lado, o governo ao se dedicar a buscar receitas para cumprir as metas do ano, também fica no curto prazo.

Em resumo, hoje o quadro fiscal está muito concentrado nessas duas questões de curto prazo: gerar receita a qualquer custo para cumprir a meta, e se não for cumprir, faz um contingenciamento no limite para fechar a conta. Com isso, deixa de discutir o que tem de ser discutido.

Que aspectos deveriam estar presentes no debate fiscal e não estão?

Se forem implementadas reformas, principalmente nos gastos, o espaço que seria aberto poderia viabilizar as metas não só de um ano, mas também para um período mais largo à frente.

Uma das críticas que se faz ao projeto de lei orçamentária de 2025 é que ele repete a estratégia de 2024. Continua-se contando com volume grande e incerto de receitas. Se olharmos para um prazo mais longo, a perspectiva continua a ser de incertezas.

O que está incerto hoje provavelmente vai continuar incerto em 2025. O ano de 2026 é ano eleitoral e 2027 ninguém sabe o que vai ser.

Assim como houve uma reforma ampla da tributação do consumo, e precisa haver outra abrangendo renda e patrimônio, sem falar em reformas que afetem despesas, o processo orçamentário também precisa ser reformado. Entre tantas reformas, está fazendo faltando uma reforma no processo de definição do Orçamento.

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