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'Evangelização do Brasil' ultrapassa a fé e vira nova ética e estética

19.jul.20 - Passeata de grupos evangélicos em defesa do então governo Bolsonaro - Jacqueline Lisboa/Agif/Estadão Conteúdo
19.jul.20 - Passeata de grupos evangélicos em defesa do então governo Bolsonaro Imagem: Jacqueline Lisboa/Agif/Estadão Conteúdo
do UOL

Rosana Pinheiro-Machado

Colunista convidada

23/09/2024 05h30

Perdi as contas de quantas vezes passei pelos stories de conhecidos e lá estava, novamente, o trecho da música gospel "Deus, eu tenho tantas bênçãos", da cantora Isadora Pompeo, que tem mais de 8 milhões de seguidores no Instagram. O detalhe importante aqui é que a maioria dessas pessoas não era evangélica. No Uber, nas lojas, em todos os lugares, o estilo musical virou parte do cotidiano brasileiro. Antes marginalizado, atrelado ao estigma de pertencer às camadas populares, o gospel se tornou o novo normal.

Mas esta não é uma coluna sobre gospel, tampouco sobre o mundo evangélico. Esta é uma coluna sobre o recrudescimento do conservadorismo no Brasil.

Durante as eleições, é essencial olhar além dos resultados, pois a vitória de Lula não significa a derrota do conservadorismo bolsonarista.
O bolsonarismo ajudou a consolidar o conservadorismo como o normal, o bonito, o correto, não apenas entre segmentos populares, mas também entre as novas elites digitais, econômicas e políticas. A gravidade do problema está longe de ser as "tantas bênçãos", que são apenas a superfície da questão. Importa aqui o que esse sinal revela sobre uma cultura em profunda transformação, marcada pela capilaridade da gramática cristã e patriarcal.

Embora o conservadorismo não tenha sido criado por Bolsonaro — o Brasil sempre liderou tristes estatísticas de violência contra mulheres e a população trans —, o bolsonarismo, amplamente apoiado por igrejas e elites, consolida um fenômeno político e cultural preocupante — processo que não é monolítico, que é disputado e contestado.

A "evangelização do Brasil" para além da fé — tema sobre o qual aprendo muito dialogando com Instituto de Estudos da Religião — é o transbordamento da lógica religiosa para além do credo, como uma nova ética e estética, fortemente impulsionada também pelo ecossistema dos novos ricos influenciadores.

No estereótipo cada vez mais disseminado desse universo via cultura digital, há um único modelo de família e de vida: o casal heterossexual, com filhos, casados por muito tempo para acumular riqueza, pois, no mundo dos investidores, o casamento entre o "homem de valor" e a "mulher de virtude" ajuda a criar fortuna. O homem de valor acumula riqueza, enquanto a mulher cuida da família. Ambos, obviamente, estão "no shape". (afinal, a indústria fitness é parte do sistema). Essas famílias podem ser evangélicas praticantes, mas tornou-se comum, no mundo dos ricos, ser cristão como estilo de vida, à la Pablo Marçal, como uma forma de moralidade a ser destacada no mundo das aparências.

Esse não é um fenômeno exclusivamente brasileiro, embora o Brasil seja sempre um caso exacerbado à parte. Basta observar o crescimento do fenômeno das "trad wives" — termo usado pela extrema direita para se referir com orgulho às esposas tradicionais que proporcionam estabilidade ao lar e ao marido.

Nos Estados Unidos, a nova face do trumpismo é o jovem ultraconservador, ultracatólico, ultranacionalista e agressivo, como J.D. Vance, candidato a vice-presidência. Ele fez da conversão religiosa adulta um projeto de vida, político e para a nação, defendendo rigidamente a separação das virtudes masculinas e femininas, com a primeira sendo protetora.

No Brasil, Marçal, também uma nova figura da extrema direita, se orgulha da sua esposa virtuosa e comedida. Ele é adepto de desbravar a natureza para reafirmar valores de masculinidade. Outros grandes nomes do investimento e do mundo coach, como Thiago Nigro, o Primo Rico, também são adeptos dessas práticas de excursões para exercitar a masculinidade. Esse mundo dos homens que querem se aproximar na verdadeira essência caçadora segue a lógica, intencionalmente ou não, dos grupos masculinistas e neonazistas na Europa, que se identificam com lobos.

Muitas pessoas ficaram chocadas quando o CEO da empresa G4, Tallis Gomes, do mesmo ecossistema digital de Marçal e Nigro, disse que não teria uma mulher como CEO, pois elas "se masculinizam demais". Outro dia, ele postou que sua esposa havia deixado um sorvetinho na mesa dele, com um bilhete que estaria sempre ao seu lado. Sem recorrer a trilha de Isadora Pompeu, ele terminou agradecendo a Deus por tê-la colocado em sua vida.

Das tantas bênçãos nos stories ao caso da CEO mulher, tudo está interligado a uma transformação cultural incentivada pelas velhas e novas elites religiosas, políticas, militares, econômicas e digitais (investidores, pastores e coaches). Este é o pior legado do bolsonarismo, que não iniciou o fenômeno, mas o legitimou no momento em que as elites nacionais endossaram o projeto autoritário e conservador. Com a ajuda das mídias sociais, tudo isso é potencializado e fortalecido nas bases da sociedade.

No meio disso tudo, as organizações feministas conquistaram uma das maiores vitórias da história recente contra o conservadorismo: barrar o PL 1904/24, que equiparava a pena do aborto ao homicídio. É claro que uma parte enorme do Brasil está se tornando cada vez mais feminista, antirracista, mais queer, menos binária. No entanto, entender que o avanço do conservadorismo brasileiro não é apenas uma questão de estilo ou superfície, mas de transformação de normas profundas, é essencial para garantir a vida, a autonomia e o direito de existir de formas diferentes em uma sociedade que tenta nos homogeneizar, com o único objetivo de aumentar o poder de poucos.

*Rosana Pinheiro Machado é antropóloga e professora titular da Universidade de Dublin (UCD) e diretora do Digital Economy and Extreme Politics Lab (DeepLab)

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