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Sete em cada dez italianos acreditam que migrantes africanos sofrem racismo no país

22/08/2024 10h36

As Olimpíadas de Paris 2024 reanimaram debates na Itália sobre o direito de cidadania italiana e racismo. Um mural, que continha uma homenagem à Paola Egonu, considerada a melhor jogadora italiana da seleção feminina de vôlei, foi vandalizado. A atleta campeã olímpica, nascida em Cittadella, cidade próxima a Veneza, tem origem nigeriana por parte dos pais.

Gina Marques, correspondente RFI na Itália

O primeiro ouro da seleção italiana no vôlei feminino veio com as mãos de Paola Egonu, a maior pontuadora da final contra os Estados Unidos. A jogadora italiana marcou 22 pontos determinantes para a conquista do título. Ela nasceu em Cittadella, na região do Vêneto, no norte da Itália, tem 25 anos e seus pais são imigrantes vindos da Nigéria.

Mas a satisfação pela vitória não foi suficiente para aplacar as controvérsias, não sobre o mérito das atletas, mas sobre a cor da pele de algumas jogadoras. Além de Egonu, a seleção feminina de vôlei conta com Myriam Sylla e Loveth Omoruyi, mulheres que nasceram na Itália, cujos pais têm origens africanas.

O ex-general Roberto Vannacci, eleito eurodeputado com o partido de extrema-direita Liga para Salvini Premiê, acendeu o pavio da polêmica. Ele é famoso na Itália pelo seu livro intitulado "Il mondo al contrario" (O mundo ao contrário), no qual ataca homossexuais, feministas, imigrantes e nega as mudanças climáticas. O livro já vendeu 250 mil cópias.

Sobre a vitória feminina no vôlei, Vannacci declarou: "Nunca duvidei que Paola Egonu fosse uma atleta italiana muito boa. Continuo a afirmar que os seus traços somáticos não representam a maioria dos italianos". Dias depois, nas redes sociais, ele reiterou que "os italianos são brancos, aqueles com traços somáticos centro-africanos não os representam".

Logo após as declarações de Vannacci, na madrugada da segunda-feira (12) a artista Laika pintou um mural em homenagem a Paola Egonu. A obra, realizada em frente à sede do Comitê Olímpico Nacional Italiano (Coni), se chama "Italianità" e mostra a atleta golpeando uma bola onde aparece escrito "pare com o racismo, ódio, xenofobia e ignorância".

No entanto, um dia depois a imagem foi vandalizada. A frase foi cancelada, e a cor da pele de Egonu foi alterada para rosa. Em seguida, uma jovem pintou novamente com uma caneta a cor da pele da atleta de preto. Até que no último dia 15 de agosto, a imagem foi deturpada de novo.

Ofensas racistas

Antes da glória com o ouro em Paris, Egonu já tinha enfrentado insultos racistas de torcedores italianos. Quando tinha 16 anos e jogava com o Treviso, viu a torcida rival imitar o som de macacos a cada vez que tocava na bola. Naquele dia, Paola chorou, sem reagir.

A jogadora também foi vítima de ofensas racistas em um programa esportivo da televisão italiana. O episódio aconteceu em 23 de setembro 2022. Cristiana Buonamano, apresentadora da Sky Sports, comentava sobre a seleção italiana ao lado de um convidado, quando chamou Egonu de "macaca".

"Você falou de dois macacos, mas sabe que eu acrescentaria outra: Egonu. Busque, você, um adjetivo diferente ou original. Não sei ser original", associou de forma racista a apresentadora.

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Racismo na Itália

Sete em cada dez italianos acreditam que, na Itália, os africanos estão sujeitos a episódios de racismo e discriminação com muita frequência (22%) ou com bastante frequência (48%). É o que informou a pesquisa intitulada "África e saúde: a opinião dos italianos" feita pelo instituto Ipsos para a organização Amref Italia. A pesquisa foi realizada em outubro de 2023 em uma amostra representativa de 800 pessoas.

Segundo a pesquisa, apenas um em cada dez italianos (11%) tem a percepção correta de quantos africanos vivem hoje no país. A Itália tem uma população de quase 60 milhões de pessoas, e cerca de 1,2 milhão são de origem africana.

O estudo é detalhado e ressalta que 53% dos italianos consideram os africanos pouco ou nada integrados no país. No capítulo "África na Itália" além do racismo, outras questões são abordadas, como os obstáculos à integração e a lei da cidadania.

Lei da cidadania na Itália

A cidadania italiana é reconhecida principalmente por Jus Sanguinis, que significa direito sanguíneo, ou seja, a pessoa tem que ser descendente de, pelo menos, um italiano, mesmo que tenha nascido no exterior. A cidadania também pode ser obtida casando-se com um cidadão ou cidadã italiana.

Para quem não tem origem italiana remota nem mulher ou marido italiano, o processo torna-se complicado e caro. A Itália é um dos países com requisitos mais rigorosos para a concessão de cidadania aos imigrantes. Para aqueles que vêm de países fora da União Europeia, são exigidos pelo menos dez anos de residência em território italiano, vinculados a um contrato de trabalho legal e contínuo.

No caso de menores, mesmo nascidos em solo italiano, o processo pode ser ainda mais demorado. Na verdade, eles só podem solicitar a cidadania depois de completarem 18 anos e terem residido legal e continuamente na Itália. Além disso, o pedido de cidadania tem que ser feito até 12 meses após atingir a maioridade.

Portanto, a lei exclui dezenas de milhares de menores dos direitos associados à cidadania italiana, apesar de viverem e crescerem no país. Também os vincula à condição dos pais, cuja autorização de residência pode expirar e, portanto, obrigar toda a família a abandonar o país, comprometendo a continuidade da residência necessária à obtenção da cidadania.

Existem algumas exceções a esta regra. Por exemplo, os atletas que obtêm resultados excepcionais nas respectivas modalidades esportivas podem acessar a um procedimento acelerado de cidadania, graças ao mérito esportivo.

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Propostas para mudar a lei 

Alguns partidos progressistas de oposição, como Partido Democrata, +Europa, Aliança Verde e de Esquerda, propõe que seja reconhecida a cidadania italiana a todos os indivíduos nascidos na Itália, independentemente da nacionalidade dos pais. É a chamada 'Jus soli', que significa direito de solo, ou seja, um princípio pelo qual uma nacionalidade pode ser atribuída a um indivíduo de acordo com seu lugar de nascimento.

Segundo um estudo da fundação Leone Moressa, feito para o jornal La Repubblica, com o 'Jus soli' seriam beneficiados 1,2 milhão de menores estrangeiros nascidos de 2006 até hoje na Itália, mais 50 mil novos nascimentos por ano.

Os dois principais partidos de extrema-direita do governo, Irmãos da Itália e Liga, são contrários a mudar a lei. Mas o governo está dividido, porque o partido aliado Força Itália apoia outra proposta, a chamada 'Jus Scholae', que também é defendida pelo Movimento Cinco Estrelas, partido de oposição.

A proposta 'Jus Scholae' é que a cidadania italiana seria reconhecida ao menor estrangeiro nascido na Itália, ou que tenha chegado antes de completar 12 anos, e que tenha concluído um ciclo escolar de pelo menos cinco anos. De acordo com a fundação Moressa, a lei interessaria 135 mil estudantes hoje considerados estrangeiros, além de 6 mil a 7 mil novos beneficiários por ano.

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