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Dona Yayá: a herdeira dada como louca que virou prisioneira na própria casa

Sebastiana de Mello Freire, mais conhecida como Dona Yayá (à esquerda) e a casa onde viveu encarcerada até a morte (à direita) Imagem: Reprodução/Wikipedia

Do UOL, em São Paulo

27/07/2024 04h00

Dos 74 anos de vida que Sebastiana de Mello Freire viveu, 36 foram em isolamento. Herdeira de um grande patrimônio em São Paulo, Dona Yayá, como era conhecida, foi tachada como louca em uma sociedade que negava direitos básicos às mulheres e determinava normas rígidas para o que era moralmente aceito.

Sebastiana viveu lutos consecutivos, enfrentou uma pandemia de um vírus mortal e desconhecido e quando finalmente começou a experimentar a liberdade, viu a vida ser colocada de cabeça para baixo por um diagnóstico: a histeria.

Quando falamos em diagnóstico, não estamos falando sobre algo que existe desde sempre. É a formação de algo situado no mundo, sobre o que disseram da experiência de uma pessoa. E no caso de Sebastiana, a gente pode pensar como que as mulheres eram lidas na época dela - o que podia, o que não podia - porque esse diagnóstico de alguma maneira tem por função coordenar as relações sociais e ordenar o mundo.
Ana Paula Müller de Andrade, psicóloga e doutora em Ciências Humanas pela UFSC

Uma vida marcada por tragédias

Sebastiana de Mello Freire vinha de uma família rica, que tinha muitas posses de terra no estado de São Paulo.

Ela era de Mogi das Cruzes e veio morar na capital aos 14 anos com o seu irmão em um casarão na rua Sete de Abril após a morte dos pais: o pai perdeu a vida em um acidente de carro e a mãe sofreu uma hemorragia em decorrência da retirada do útero.

Os filhos, ainda menores de idade, precisavam de um tutor, que havia sido designado pelo pai ainda antes da morte dele.

Ele existia não apenas pelo controle financeiro, mas também por essa ideia de manter a boa imagem da mulher. A existência de uma tutela também é um pouco vinculada a esse controle.
Thaís Carneiro, historiadora e criadora do projeto Mulheres Viajantes

Caminhando sozinha pelo mundo

Aos 18 anos, Sebastiana perde o irmão, que tirou a própria vida durante uma viagem de navio a vapor aos 23. Sem o irmão, ela passa a ser a única herdeira de toda uma fortuna acumulada pela família.

Ainda que estivesse em luto e vivendo a solidão, Sebastiana começa a desfrutar de uma certa liberdade restrita para as mulheres da época: ela dirige um carro de luxo, começa a trabalhar com fotografia, faz viagens à Europa e frequenta espaços de encontros da elite intelectual e artística de São Paulo. Apesar dessa emancipação, ela ainda era uma mulher que foi descrita como conservadora e bastante religiosa.

Mesmo com as liberdades, Sebastiana permanece sob tutela. Vários homens assumem essa figura ao longo dos anos, mas o cargo não deixa de existir, mesmo com a maioridade de Sebastiana.

Por volta dos 30 anos, Sebastiana começa a enfrentar crises nervosas, as primeiras que a fariam ficar presa na própria casa para o resto da vida.

Ela vive uma sucessão de mortes na família e, passado alguns anos, vem o início da gripe espanhola, que chega bem pesada em São Paulo. Ela vem no mesmo sentido da covid-19: como uma enfermidade que as pessoas não fazem mínima ideia do que é. Começa a criar um ambiente de desespero de uma ausência de futuro.Quando falo sobre isso, sempre peço para comparar como estávamos fragilizados durante a pandemia pra conseguirmos um pouquinho imaginar o mal-estar que isso causou na Dona Yayá. E nessa eclosão de situações, ela tem uma crise nervosa.
Thaís Carneiro, historiadora criadora do projeto Mulheres Viajantes

O diagnóstico

A casa da Dona Yayá no Bixiga Imagem: Arquivo São Paulo Antiga

Sebastiana é diagnosticada com "pesadíssima tara hereditária". Essa foi a definição que apareceu em um laudo médico publicado no jornal "O Parafuso", em 1920. O documento obtido pela reportagem ainda cita que, após sair de uma escola de freiras, Sebastiana pode "dar livre expansão aos seus ideais de misticismo, recusando em absoluto a qualquer projeto de casamento", além de citar delírios persecutórios.

Tanto fizeram, tanto enredaram, tanto oprimiram, que um dia o medo invadiu o espírito da pobre Mello Freire. A sua mente, combalida, exausta, entrou a agitar-se, em vesperas (sic) da mais rasgada demência.
Trecho de reportagem no jornal "O Parafuso", em 1920

Diagnóstico teve intervenção do tutor. O periódico ainda cita que muito do que os peritos analisaram teria sido contado pelo ex-tutor da época, o advogado e político Albuquerque Lins. A reportagem acusa o advogado de não ter conseguido subordinar Sebastiana a se casar com um de seus filhos e, por isso, "vingou-se miseravelmente, encarcerando-a em manicômios". À época, o advogado não respondeu às acusações para o jornal.

A questão de acessar uma educação formal, de querer escolher seu companheiro, de decidir se quer ou não casar -- com quem e quando, se quer ou não ter filhos, ter desenvolvimento de artista ou presença política, tudo isso acabava sendo entendido como um sintoma de histeria.
Thaís Carneiro, historiadora e criadora do projeto Mulheres Viajantes

De manicômio à própria casa transformada em prisão. Com a repercussão do caso e novas avaliações de médicos, Sebastiana sai do Instituto Paulista, onde estava internada, sendo transferida para uma casa da família no bairro do Bixiga, na rua Quatorze de Julho. A propriedade é completamente transformada: são colocadas grades, janelas que só abrem por fora, banheiro com olho mágico, além de regras que a privam de receber visitas ou frequentar sozinha o próprio jardim.

É como se fosse um sanatório particular. Tudo acaba sendo um acelerador dessas crises. Ela começa a carecer do básico. Ela vive com funcionárias, filhos dessas funcionárias, primas de segundo grau, que eram crianças. Ao todo, oito pessoas com ela e praticamente todas mulheres -- encarceradas.
Thaís Carneiro, historiadora e criadora do projeto Mulheres Viajantes

Tem algo que é da Sebastiana que é dessa leitura da mulher à época dela. Um diagnóstico a impossibilita não apenas para a vida social, mas ela fica para sempre presa nesse diagnostico. É algo tão intenso porque se liga ao corpo das mulheres. Uma mentalidade de que como elas são mais frágeis, então é quase que automaticamente elas serem doentes.
Ana Paula Müller de Andrade, psicóloga e doutora em Ciências Humanas pela UFSC

No entanto, o espaço da Casa de Dona Yayá também poderia ter sido uma referência de cuidado da época. A educadora Carmen Ruiz, da Casa da Dona Yayá, afirma que Sebastiana recebeu "o máximo de cuidado" dentro do possível daquela época.

Havia uma disputa pelo diagnóstico dela. Eram os laudos médicos, os primos dela que poderiam herdar a herança e, por isso, estavam querendo a curatela. O processo de interdição dela era de 19 volumes. Mas, com muita certeza, quem cuidou dela aqui seguiu à risca toda a indicação dos médicos porque havia a triste história do irmão dela que, voltando de uma viagem, se jogou do navio ao mar. Havia um medo de isso se repetir de alguma forma. Assim, dentro do que foi possível na época, ela recebeu o máximo cuidado. Ela não ficou abandonada.
Carmen Ruiz, educadora da Casa Dona Yayá

Fim de vida em isolamento. A causa da morte foi uma parada cardíaca, segundo Ruiz. Ela estava em uma mesa de cirurgia devido a um tumor uterino e os médicos optaram pela histerectomia. Ela morre aos 74 anos.

Até hoje o diagnóstico de Dona Yayá é incerto. No entanto, há pesquisadores que acreditam que ela poderia ser bipolar. Com 36 anos encarcerada na própria casa, somam-se outras doenças, como a perda da mobilidade e de força física.

Infeliz Yayá! Tudo em seu redor conspira para que ela não se cure, jamais.
Trecho de reportagem no jornal "O Parafuso", sobre os rumos da herdeira após saída do Instituto Paulistano, em 1920

A história de Sebastiana reflete muitos paradigmas sociais. Para a psicóloga Andrade, apesar do sofrimento psíquico e emocional que Dona Yayá possa ter enfrentado, o tratamento dela pode ter potencializado ainda mais a dor que ela enfrentava, já que se manteve isolada.

O tratamento sob custódia é ineficiente e a literatura [acadêmica] comprova. Ele parte de uma ideia de que o sujeito deveria ser impedido do convívio social e não que, quando adoecidos, ele precise justamente das suas relações sociais, de rede de apoio, de acessar bens culturais e serviços que não só os de saúde.
Ana Paula Müller de Andrade, psicóloga e doutora em Ciências Humanas pela UFSC

Casa assombrada?

A casa de Dona Yayá muitas vezes é associada a um local de assombrações. Para as especialistas, isso tem reflexos sociais. A psicóloga defende que a conexão do sobrenatural com a história de Sebastiana pode estar associada ao mito da loucura, que aparece como uma assombração. Já a historiadora Carneiro explica que o fato de Yayá ser mulher é ainda mais munição para esse mito.

[Essa associação] tem um certo silenciamento de uma figura que foi extremamente importante para vida cultural da cidade. Essa ideia de quão perigosas são essas mulheres - não só foi ameaça quando tava viva, mas continua sendo uma ameaça porque é a representação do descontrole, do erro, da falha e da vulnerabilidade. Um ser estranho, que ainda que cause repulsa também fascina. A gente precisa contar a história dessas pessoas, não só sobre elas serem vítimas e terem sido torturas, mas dar voz a elas.
Thaís Carneiro, historiadora e criadora do projeto Mulheres Viajantes

Essa história com a Dona Yayá também tem um papel social. É para demonstrar para onde vão às mulheres que escapam às normas. Atualiza aquele medo: 'já pensou ficar louca como Yayá?'.
Ana Paula Müller de Andrade, psicóloga e doutora em Ciências Humanas pela UFSC

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