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Filho com baixa visão: 'Na escola, falta estrutura e ele se vira como dá'

Marivani Britto da Silva, com o marido e o filho, Lourenzo, que nasceu com baixa visão e enfrenta dificuldades de acessibilidade no colégio onde estuda - Arquivo pessoal
Marivani Britto da Silva, com o marido e o filho, Lourenzo, que nasceu com baixa visão e enfrenta dificuldades de acessibilidade no colégio onde estuda Imagem: Arquivo pessoal
do UOL

Manuela Rached Pereira

Do UOL, em São Paulo

22/07/2024 04h08

Auxiliar de caixa em uma lotérica de São Paulo, Marivani Britto da Silva, 47, é mãe de Lourenzo, 11, seu único filho, que nasceu com baixa visão e hoje é aluno da Escola Estadual Professora Inah de Mello, em Santo André, no ABC Paulista, que se tornou um polo de atendimento da rede estadual para alunos com deficiência visual.

Segundo Marivani, no colégio, onde Lourenzo ingressou no 6º ano do fundamental em fevereiro deste ano, hoje faltam profissionais, materiais adaptados e estrutura acessível para atender crianças e adolescentes cegos e com baixa visão.

A VivaBem, ela conta sobre a descoberta do diagnóstico do filho, que nasceu com um quadro de baixa visão secundária e distrofia hereditária de retina, e os obstáculos de acessibilidade e aprendizagem que ele enfrenta no colégio desde o início do ano.

'Baixa visão parecia um palavrão'

"Lourenzo veio a partir de uma gravidez quando tinha 36 anos. Sempre sonhei em ser mãe, mas não conseguia engravidar. Até que consegui e, durante a minha gestação, em nenhum momento soube que ele tinha uma deficiência visual. Foi só quando ele estava com quatro meses que a gente descobriu a baixa visão.

Antes disso, percebia, por exemplo, que, quando o meu filho deixava cair um brinquedo, ele não virava com o rosto para procurar onde tinha caído, como muitos bebês costumam fazer. Ao invés disso, ele tateava, como se fosse cego. Então, até descobrir a baixa visão, a gente achava que o Lourenzo era cego.

No teste do olhinho que fizemos com ele ainda bebê não apareceu nada. Na época, ele passou por vários médicos especialistas e nenhum deles diagnosticava a baixa visão. Até que um médico realizou vários exames nele e nos disse: 'Mãe e pai, vocês precisam ser fortes porque, ou o filho de vocês é cego, ou tem baixa visão'.

Nem eu, nem meu marido, nem ninguém da minha família tinha ouvido falar em baixa visão até ali. Para nós, aquilo era um palavrão.

Então o médico fez os exames e descobriu que o Lourenzo tinha baixa visão. Hoje, o grau dele é menor do que era quando nasceu, mas, ainda assim, se soltarmos o Lourenzo lá fora, na claridade, ele não vai sozinho para lugar nenhum. Ele só enxerga coisas muito próximas e usa um óculos que tem a lente azul e vermelha para cortar a claridade.

Quem tem baixa visão como o meu filho gosta do escuro, de assistir televisão com as cortinas fechadas, por exemplo. Ele anda hoje com uma bengala verde, que é o guia de quem tem baixa visão, diferente da bengala branca, que é para pessoas cegas.

Primeiro contato (e obstáculos) na escola

No começo, foi muito difícil para o Lourenzo na escola porque as professoras não aceitavam ter de fazer um trabalho ampliado para ele, que não lia e escrevia igual as outras crianças.

Uma folha inteira de sulfite, por exemplo, não é suficiente para ele escrever o nome dele. Para ele ler e escrever, deve ser tudo ampliado, com letras grandes, ou em braille.

Na creche, correu tudo bem, mas, quando passou ao 1º ano [do fundamental], ele teve muita dificuldade. A professora dele na época dizia que não conseguia lidar com o tipo de deficiência que ele tinha, dizia que ele estava na sala errada.

Então, eu e o pai do Lourenzo fomos até a Secretaria de Educação de Santo André e a secretaria da antiga escola para conseguir pessoas auxiliares na sala para ajudar nosso filho nas tarefas. Naquela escola, o Lourenzo não tinha isso até a gente brigar para conseguir.

Só que, na época, com cinco anos de idade, o Lourenzo sofreu um acidente na escola e quebrou o braço. Ele caiu, a professora não viu a queda e, quando o meu marido foi buscá-lo no colégio, ela disse que não tinha sido nada. Mas quando eles chegaram em casa e o pai foi dar banho, percebeu que o punho dele estava inchado e, depois, descobrimos que ele tinha quebrado em três lugares.

Depois daquilo, ele ficou 45 dias afastado e, quando voltou, pedi a transferência para outra escola.

Escola inclusiva?

Louzenzo foi transferido para a EMEIEF [Escola Municipal de Educação Infantil e Ensino Fundamental] Carlos Drummond de Andrade e lá foi uma maravilha, vários colegas e professores o ajudavam. Mas o colégio só ia até o 5º ano, então, em 2024, ele teve de mudar para a [Escola Estadual Professora] Inah de Mello, onde também estudam vários outros alunos com deficiência visual.

Na Inah de Mello, eles precisam de material adaptado e ampliado [para alunos com baixa visão e cegos], mas a escola não tem recursos. O Lourenzo e outras crianças precisam de alguém para auxiliá-los e o colégio também não tem esses profissionais.

Por exemplo, meu filho tem professores que escrevem no quadro o que as crianças precisam passar a limpo no caderno. Só que o Lourenzo não consegue fazer isso. Ele trabalha com a máquina de braille, na qual deve escrever em braille o que o professor escreve em tinta, só que para isso ele precisaria de um auxiliar, e não tem.

O Lourenzo hoje está se virando como consegue. Ele sai da sala de aula, vai para a sala de recursos [destinada a alunos com deficiência visual no colégio] fazer os trabalhos em braille ou com materiais ampliados. Lá, ele precisaria ter uma pessoa para ajudar no trabalho ampliado, mas também não tem. Nessa sala, só existe uma professora, que tenta ser a mãe de todos ali, mas ela não dá conta de auxiliar todos os alunos sozinha.

Falta de material

Também questiono sempre a falta de material adaptado na escola. Dizem que é um problema dos últimos dois anos, quando começou a faltar material adaptado e professor para atender nossas crianças.

No caso do meu filho, além do braille, ele tinha que estar aprendendo com a tinta também porque, hoje, ele tem só 11 anos, mas a gente não sabe o que o futuro vai exigir dele. Pode ser que ele não dependa só do braille porque ele não é cego.

Ele lê algumas coisas, como mensagens de texto com as letras em branco no celular com o fundo da tela preto, só que outras ele não consegue, como letras pretas no fundo branco.

Quando tem aula de educação física na quadra esportiva, que é muito longe da sala de aula e com um acesso que dificulta a chegada de alunos com deficiência em geral, não só visual, são colegas que ajudam o Lourenzo na ida e na volta.

No colégio, as crianças também precisam trocar de sala conforme muda a matéria e a gente não concorda com isso porque o Lourenzo tem baixa visão, precisa carregar a máquina de braille, o material e a bengala toda vez que sai da sala.

Em cinco meses, desde que entrou, ele já sofreu dois acidentes na escola. Em um deles, caiu na escada porque os coleguinhas que têm a visão perfeita descem correndo para a quadra nos intervalos. Então, passaram por cima da bengala do Lourenzo, que caiu, e outros alunos passaram por cima dele.

Nessa escola, é permitido levar o celular, então ele ligou para o pai dele em desespero, chorando, nas duas vezes em que caiu. Hoje, são colegas que o ajudam. Um coleguinha ajuda na mochila e outro coleguinha carrega a máquina para ele conseguir andar com a bengala."

'Um entre milhares'

O sociólogo Alberto Pereira, presidente da Organização Nacional de Cegos do Brasil e consultor da Laramara (Associação Brasileira de Assistência à Pessoa com Deficiência Visual), acredita que o caso relatado pela mãe de Lourenzo é "um entre milhares no país".

O caso do Lorenzo nos envergonha e, pelo que apuramos, existem mais crianças com deficiência visual que passam pelos mesmos problemas no colégio. Mas sabemos que essa falta de material, de acessibilidade, e esse descaso pelo qual o Lorenzo e outras crianças da escola estão passando, é uma realidade no Brasil inteiro. E não pode mais acontecer. Alberto Pereira

Sobre a educação inclusiva, Pereira, que também é cego e trabalha há 24 anos com projetos de acessibilidade para pessoas com deficiência visual, ressalta: "Inclusão não significa só receber a criança com deficiência".

"Para você falar que uma escola é, de fato, inclusiva e acessível, a criança precisa receber os materiais adequados em dia, auxílio para que possa aprender junto com seus colegas, ter garantido o seu direito de ir ao recreio com segurança, a brincar com seus amigos, a participar da aula de educação física", exemplifica.

Para escolas com alunos cegos ou com baixa visão, o sociólogo afirma que é fundamental a "junção de formação [de profissionais], o estímulo ao respeito à diversidade e a utilização de tecnologias adequadas e materiais adaptados", como máquinas de braille, livros acessíveis digitalizados e com letras ampliadas, para atender "crianças nas suas múltiplas especificidades".

"No mesmo dia em que alunos [sem deficiência] recebem o livro tradicional, à tinta, não dá para fazer a outra criança ou pré-adolescente [com deficiência visual] esperar. Assim você os coloca numa situação extrema de vulnerabilidade educacional, social e, inclusive, psicológica, para aquele momento e para o futuro daquela criança", reforça Pereira.

Dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2023 mostram que pessoas com deficiência no Brasil estão menos inseridas no mercado de trabalho, nas escolas e, por consequência, têm menos acesso à renda.

Segundo o levantamento, a taxa de analfabetismo para PCDs no país foi de 19,5%, enquanto para as pessoas sem deficiência foi de 4,1%.

Além disso, a maior parte dos adultos de 25 anos ou mais com deficiência não completaram a educação básica, sendo 63,3% sem instrução ou com o fundamental incompleto, e 11,1% com o ensino fundamental completo ou médio incompleto. Para as pessoas sem deficiência, esses percentuais foram, respectivamente, de 29,9% e 12,8%.

Por isso, a gente precisa conscientizar a sociedade que as pessoas com deficiência precisam ter direito a tudo que pessoas sem deficiência possuem. Alberto Pereira

Posicionamento da Secretaria de Educação

Questionada pela reportagem, a Seduc-SP (Secretaria da Educação do Estado de São Paulo) afirmou em nota que a Escola Estadual Professora Inah de Mello, onde Lourenzo estuda, "conta com profissionais habilitados para garantir o atendimento das necessidades de todos os estudantes com deficiência visual", e que "está em andamento a contratação de mais um profissional para integrar o quadro".

Sobre a falta de materiais adaptados para alunos com deficiência visual, a pasta informou que a escola, no período das férias, encaminhou 24 equipamentos de escrita em braile para manutenção, com prazo de retorno em agosto. Afirmou ainda que a unidade "possui tablets e notebooks para os estudantes com baixa visão, que auxiliam na ampliação do conteúdo, e os alunos com cegueira contam com softwares leitores dos conteúdos apresentados em tela".

Em relação à falta de uma estrutura predial acessível, respondeu que "a adaptação para alunos com necessidades ocorre em toda a escola, que conta com placas sinalizadoras em braille e tinta ampliada em todos os ambientes, (...) além de ter piso tátil por todo o prédio". E acrescentou que no dia 2 de julho, "engenheiros da Fundação para Desenvolvimento da Educação estiveram na unidade para análise das necessidades de melhorias no espaço".

Diagnósticos e recursos visuais

Segundo Maria Aparecida Onuki Haddad, médica oftalmologista, coordenadora médica da Laramara e chefe do setor de Reabilitação Visual da Clínica Oftalmológica do Hospital das Clínicas, em São Paulo, profissionais da saúde têm percebido um aumento de casos de crianças com quadros de perda visual.

Atualmente, temos observado aumento da população infantil com deficiência visual e outras deficiências associadas, que necessitam de atendimento especializado de forma interdisciplinar. Maria Aparecida Onuki Haddad

Entre os diagnósticos, há quadros de deficiência visual profunda, quando a pessoa apresenta uma resposta visual muito pequena ou nenhuma percepção visual (cegueira), e quadros leves, moderados ou graves, sendo a deficiência moderada e grave as categorias conhecidas como baixa visão —condições intermediárias entre a visão normal e a perda total da visão.

A médica ressalta a importância da realização do "teste do reflexo vermelho", também conhecido como teste do olhinho, "que deve ser repetido três vezes ao ano nos primeiros três anos de vida, em consultas periódicas de rotina com um médico pediatra", e é garantido pelo SUS (Sistema Único de Saúde).

A importância para a realização do teste é a possibilidade de detecção de problemas oculares que podem levar a um menor desenvolvimento visual ou a quadros irreversíveis de ambliopia ou deficiência visual. Maria Aparecida Onuki Haddad

O teste do olhinho, porém, "não substitui a avaliação médica oftalmológica do bebê, mesmo aos que não apresentam dificuldades visuais perceptíveis pelos pais ou familiares, e deve ser realizada nos primeiros seis meses de vida", reforça.

Entre os recursos indicados para pessoas com baixa visão, estão:

Ópticos, como óculos para correção da refração ou com lentes especiais para perto, filtrantes e prismáticas, e lupas manuais;

Não ópticos, que modificam as características de materiais que são utilizados em atividades diárias, como recursos de ampliação de letras e textos, aumento do contraste com canetas de ponta porosa e lápis com grafites mais macios, iluminação direcionada e cadernos com pautas ampliadas e reforçadas;

Eletrônicos, que integram sistemas ópticos para ampliação da imagem em monitores e que podem ser de mesa ou portáteis;

Recursos de informática e smartphones que apresentam recursos para maior resolução da tela (como ampliação, aumento do contraste, polaridade inversa) e também recursos audíveis.

Já para crianças com perda visual profunda ou cegueira devem ser indicados recursos táteis e/ou sonoros para a realização de atividades diárias, afirma a oftalmologista. "Ressaltamos a importância do Sistema Braille por meio do uso da máquina braille e de displays braille para computadores, e também demais recursos tecnológicos cada vez mais avançados", completa.

O atendimento oftalmológico é o início do trabalho em habilitação ou reabilitação visuais. O atendimento multiprofissional, com caráter interdisciplinar, que abrange as áreas de assistência social, psicologia, intervenção precoce, atendimento educacional especializado, orientação e mobilidade, atividades de vida autônoma irão garantir o atendimento às necessidades da criança com baixa visão ou cegueira para seu pleno desenvolvimento.

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