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Festival de Avignon destaca teatro de resistência e lança evento contra extrema direita na França

05/07/2024 13h49

Cerca de 1.700 espetáculos. Um total de 25 mil apresentações, em 150 teatros e espaços cênicos. 1320 companhias de teatro, sendo cerca de 160 delas estrangeiras e cerca de 115 mil espectadores na mostra oficial, e mais de 2 milhões de ingressos vendidos no OFF. O Festival de Avignon, dirigido pelo português Tiago Rodrigues, abriu as portas no último dia 29 de junho, mantendo o foco no engajamento político com uma incrível pluralidade de vozes teatrais, no maior evento de artes cênicas do mundo.

Cerca de 1.700 espetáculos. Um total de 25 mil apresentações, em 150 teatros e espaços cênicos. 1320 companhias de teatro, sendo cerca de 160 delas estrangeiras e cerca de 115 mil espectadores na mostra oficial, e mais de 2 milhões de ingressos vendidos no OFF. O Festival de Avignon, dirigido pelo português Tiago Rodrigues, abriu as portas no último dia 29 de junho, mantendo o foco no engajamento político com uma incrível pluralidade de vozes teatrais, no maior evento de artes cênicas do mundo.

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Quem abriu o baile em 2024 na prestigiosa Cour d'Honneur do Palacio do Papas, vitrine principal do Festival de Avignon, foi a encenadora espanhola Angélica Liddell, com Dämon, peça que homenageia Ingmar Bergman, trazendo toda a fúria do verbo da espanhola, um verdadeiro convite à rebelião. 

"Descobri Bergman ainda muito jovem na televisão pública espanhola, numa época em que esse tipo de mídia pública ainda era interessante na Espanha, eu devo meu imaginário e minha educação estética a ele e a outros cineastas, e desde pequena percebi que Bergman tinha conseguido colocar palavras para nomear meus sentimentos, e isso me nutriu espiritualmente e esteticamente", contou a performer espanhola, uma veterana do festival.

"Para mim, este testamento de Bergman sobre como deveria ser seu funeral é seu último grande ato estético. Toda rebelião passa pela estética, e não pela mensagem. Efetivamente, essa descrição de Bergman de seu funeral é sua última grande obra, uma escolha estética formidável, e que nos coloca em contato com o grande demônio da vaidade", detalha a diretora, uma provocadora por excelência.

"Arte é coisa de artistas"

Um dos alvos de Angélica Liddell na peça é, assim como Ingmar Bergman, os críticos. "Compartilho com ele esse ódio aos críticos. Minha obra é uma bofetada, que não posso dar fisicamente porque me denunciariam. Mas eu gostaria de confrontar toda essa gente que me insultou banal e impunemente, cara a cara, e dar-lhes uma bofetada. A arte é coisa de artistas, os críticos são arcaicos e chegam a ser, em determinado momento, uma coisa daninha para a arte", disparou Lidell.

O coreógrafo francês Boris Charmatz, hoje à frente da companhia de Pina Bausch, na Alemanha, falou sua participação como artista-cúmplice da edição 2024 do Festival de Avignon. "Essa cumplicidade está ligada a esta direção do festival de Tiago Rodrigues e sua equipe, e nasceu no momento em que Tiago se mudava para Avignon, enquanto cidadão português, convidado a assumir um posto importante na França, e eu chegava a Wuppertal, na Alemanha", declarou.

"Não se trata de um exílio, mas de se juntar a instituições muito vivas, mas, ao mesmo tempo, cheias de histórias, lendas e mitos. Essa cumplicidade nasceu então desse entrelaçamento entre passado, presente e futuro, uma vez que estamos aqui para inventar, improvisar e talvez desenhar caminhos de esperança nestas narrativas de fim do mundo que nos angustiam a todos", disse Charmatz, que apresentou Cercles, com foco no "círculo", um formato cênico que sempre assombrou a memória da dança, seja ela tradicional ou moderna, clássica ou contemporânea. 

Já o diretor do festival, Tiago Rodrigues, explicou a escolha de revisitar uma tragédia de Eurípides em Hécuba, não Hécuba, espetáculo que estreou no Festival de Avignon 2024. "Eurípides é o trágico mais progressista, aquele que coloca em questão o divino, transforma o divino em simbólico e responsabiliza os humanos por suas escolhas", diz o diretor.

"Ele introduz hesitação e uma quase psicologia nos diálogos, e sobretudo continua uma linhagem de Ésquilo e de Sófocles de olhar para o 'outro', seja o estrangeiro, seja a mulher - porque em Atenas, há 2.500 anos, a mulher era o 'outro', e não tinha acesso à tragédia, seja no palco, seja na plateia", sublinhou.

"O que ele nos propõe é algo fundamental hoje, falando de lei, falando de justiça, de vingança. Hécuba, rainha de Troia, agora transformada em escrava, uma mulher estrangeira, uma troiana, que perdeu a guerra contra os gregos, uma escrava, mais velha, e zangada, quer justiça para seu filho, morto sob a proteção de um suposto aliado", destacou Rodrigues. "Ela é madura, não é aquela heroína trágica jovem como Ifigênia ou Antígona, idealizada", aponta o diretor.

"Uma mulher ferida que exige justiça, Hécuba também é um símbolo político. Essa dimensão sempre me fascinou e atinge seu clímax em uma peça sobre a aceitação da vulnerabilidade pela sociedade", diz o diretor, na apresentação da peça. "Quando um artista diz Shakespeare ou Molière, ele está reescrevendo ou traduzindo Shakespeare, ou Molière. É um exercício de imaginação. A vida dos artistas de teatro é repleta de experiências. Há uma porosidade entre atores e atrizes, suas vidas e suas interpretações das palavras que interpretam", acredita Rodrigues.

Contra a extrema direita

Inspirado também por esse pacto euripidiano, o diretor Tiago Rodrigues irrompeu a cena da Carrière de Boulbon, nos arredores de Avignon, depois da estreia de Hécube, pas Hécube, no dia 30 de junho, após ser confirmada a vitória da coligação comandada por Marine Le Pen e Jodan Bardella nas eleições legislativas antecipadas da França, para convocar a coletividade presente a participar do evento La nuit d'Avignon (A noite de Avignon), uma iniciativa cidadã do festival para lutar contra "a ameaça da extrema direita" no país.

"Fiel a seus valores fundadores, e convencido que outro projeto de sociedade progressista, popular, democrática, republicana, feminista, ecologista e antirracista é desejável, o Festival de Avignon, convocando o público a se unir à Noite de Avignon, deseja encarnar o lugar vital do debate social e político", diz o texto do evento, que acontecerá a portas abertas e gratuitamente nos dias 4 e 5 de julho no Palácio dos Papas, vitrine principal do festival, com a presença de vários artistas convidados.

Festival de Avignon 2024 fica em cartaz no sul da França até o dia 21 de julho.

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