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'Vi amiga em chamas', diz sobrevivente de tragédia em SP 40 anos depois

Bombeiros carregam corpos em meio aos escombros na Vila Socó, em Cubatão - Ademir Barbosa/Folhapress
Bombeiros carregam corpos em meio aos escombros na Vila Socó, em Cubatão Imagem: Ademir Barbosa/Folhapress
do UOL

Maurício Businari

Colaboração para o UOL

04/07/2024 04h00

A fotógrafa Sandra Regina Luz de Souza, hoje com 51 anos, tinha apenas 12 quando viveu uma das maiores tragédias da história do Brasil, o incêndio na Vila Socó, em 1984. Mesmo após 40 anos, a memória daquele dia fatídico ainda é viva e dolorosa.

O que aconteceu

"A tragédia foi anunciada". É o que diz Sandra, quando lembra os avisos de seu irmão, que trabalhava como vigilante no centro comunitário. "Ele falava: 'Um dia, se alguém jogar um fósforo, uma bituca de cigarro, acontece uma tragédia'. Mas nada foi feito."

Tragédia da Vila Socó, em 24 de fevereiro de 1984, foi causada pelo vazamento de gasolina. A gasolina de um oleoduto da Petrobras em Cubatão, São Paulo, se acumulou em áreas residenciais, resultando em uma explosão devastadora que matou oficialmente 93 pessoas, embora estimativas extraoficiais sugiram até 500 vítimas. Centenas ficaram feridas e desabrigadas.

No dia do incêndio, Sandra estava em casa com a mãe, Ermelinda, e os irmãos. "Quando começou o incêndio, ele [o irmão] chamou nossa mãe, me chamou, acordei minha irmã Marcia e minha mãe saiu de porta em porta chamando os vizinhos", relembra. "Depois que ela conseguiu chamar um monte de gente, ela travou e falou 'Corre, filha, corre. Agora deixa a mãe morrer, porque a mãe está velha, a mãe não aguenta correr'". Foi graças a um irmão, que chegou com uma lambreta, que elas conseguiram escapar em segurança para a Vila Nova.

O descaso com a manutenção dos encanamentos era evidente. "A gente percebia que tinha algo errado com aqueles encanamentos da Petrobras ali e nada era feito", relata Sandra. "O cheiro de gasolina, petróleo, sei lá, era muito forte. Depois que o fogo se alastrou, foi uma catástrofe, não houve tempo para nada."

Lembro de amigas minhas, como a Simone, que vi passar por mim em chamas. Ela até hoje tem as marcas nas costas. Foi horrível ver ela passar gritando, se debatendo, com as costas pegando fogo. Quando as aulas voltaram na escola municipal João Ramalho, meu Deus, minha sala estava praticamente vazia. Lembro do Agnaldo, da Quitéria. Quitéria era uma amiga que sentava junto comigo na classe, ela morreu, toda a família dela morreu. Sandra Regina Luz de Souza

A fotógrafa também se lembra da chegada de pilhas de caixões e das pessoas colocando restos mortais de pessoas carbonizadas dentro deles. Famílias inteiras eram colocadas num único caixão. "As casas destruídas foram reconstruídas depois, mas a dor das perdas humanas ninguém apaga", afirma.

Para Sandra, a responsabilidade da Petrobras é clara. "Para mim, a Petrobras foi responsável, sim. Porque escavaram a área, instalaram aqueles encanamentos, e o cheiro era muito forte de gasolina ou petróleo. A gente avisou, mas nada foi feito."

Essa tragédia nos afetou emocionalmente, psicologicamente. Minha mãe sofreu muito, foi muita perda, muitos amigos, muitos conhecidos. Meu irmão perdeu a namorada e a sobrinha dela, elas foram encontradas mortas, abraçadas. É muito triste. Sandra Regina Luz de Souza

Sandra Regina, 51, e a mãe, Ermelinda, correram para avisar os vizinhos assim que o incêndio começou na Vila Socó - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Sandra Regina, 51, e a mãe, Ermelinda, correram para avisar os vizinhos assim que o incêndio começou na Vila Socó
Imagem: Arquivo Pessoal

Corrupção e precariedade

Cubatão vivia um caos político e administrativo sob a intervenção militar em 1984. Apesar do orçamento do município ser considerado volumoso, a população vivia em extrema pobreza. O advogado e jornalista Dojival Vieira, criador e membro da Comissão da Verdade da OAB/Cubatão, lembra: "As pessoas viviam sob palafitas, sem água encanada nem tratamento de esgoto". Favelas como Vila Parisi e Vila Socó exemplificavam a falta de infraestrutura básica.

Na noite de 24 de fevereiro de 1984, a Vila Socó foi palco de uma tragédia anunciada, na opinião do advogado. O vazamento de gasolina nas tubulações da favela começou pela manhã, e o forte cheiro foi denunciado pelos moradores. "A Comissão de Defesa Civil teve pelo menos 12 horas para promover a evacuação. Se isso tivesse ocorrido, ninguém teria morrido", afirma Vieira.

Autoridades negligenciaram as evidências do vazamento, resultando em uma resposta criminosa de omissão. "Estima-se que cerca de 2 milhões de litros vazaram, ao invés dos 700 mil oficiais", revela o advogado. Além disso, ele acredita que entre 508 e 800 pessoas morreram, apesar do número oficial ser de 93. A "Operação Abafa", lançada pelo Poder Público, com a conivência da Petrobras, visava mascarar a real dimensão da tragédia.

A estimativa de que o número de mortos variou entre 508 e 800 pessoas, e não os 93 oficiais, é do próprio Ministério Público. Esse número reduzido foi uma ficção criada pela direção da Petrobrás e o interventor do regime para abafar a repercussão. Afirmo sem nenhum temor de parecer exagerado que o incêndio criminoso da Vila Socó foi o incêndio com maior número de vítimas da história do Brasil, se igualando ou até superando o incêndio do Gran Circo de Niterói, em 1961. Dojival Vieira, advogado e jornalista

Caso foi reaberto há 10 anos

Em 2014, a Comissão da Verdade da OAB/Cubatão, e a Comissão Rubens Paiva da Assembleia Legislativa de São Paulo, reabriram o caso. "O depoimento de Shigeaki Ueki [então presidente da Petrobrás] nada acrescentou. Ele repetiu a versão oficial que culpa os moradores", lamenta Vieira.

Comissão da Verdade luta para preservar a memória das vítimas e garantir que os responsáveis sejam julgados. O advogado enfatiza a importância da coleta de depoimentos de personagens ainda vivos, "para explicar porque a população não foi evacuada".

Vieira sublinha ainda a necessidade de se ouvir os dirigentes da Petrobras à época, especialmente para explicar a política de indenizações. Ele denuncia: "Crianças de até 12 anos (a maioria dos mortos), suas famílias não tiveram direito à indenização porque não eram 'força produtiva'. Mesmo as indenizações foram irrisórias". Ele exemplifica a injustiça: "Duas clientes minhas descobriram que o avô que as criou após perderem os pais e um tio recebeu o equivalente hoje a pouco mais de R$ 7 mil. Por três vidas perdidas".

UOL entrou em contato com a Petrobras. Reportagem buscou um pronunciamento, mas até o momento a empresa não respondeu os questionamentos.

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