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Diretora francesa adapta obra cult de Faulkner para atualizar racismo e segregação na 'América'

30/06/2024 13h21

Direto das plantações do Mississipi para o "Make America Great Again", slogan de campanha do bilionário Donald Trump, a peça "Absalon, Absalon!", de Séverine Chavrier, oferece uma série de imagens e diálogos que evocam não apenas a força do texto do escritor norte-americano William Faulkner, mas que antecipam, em formato de pesadelo e delírio, os fantasmas do racismo, da ilegitimidade dos povos originários e do sectarismo que assombram, em looping eterno, o mundo contemprâneo.

Direto das plantações do Mississipi para o "Make America Great Again", slogan de campanha do bilionário Donald Trump, a peça "Absalon, Absalon!", de Séverine Chavrier, oferece uma série de imagens e diálogos que evocam não apenas a força do texto do escritor norte-americano William Faulkner, mas que antecipam, em formato de pesadelo e delírio, os fantasmas do racismo, da ilegitimidade dos povos originários e do sectarismo que assombram, em looping eterno, o mundo contemprâneo.

Marcia Becharaenviada especial da RFI a Avignon

Prêmio Nobel de Literatura, William Faulkner foi agraciado por sua contribuição inegável à novela norte-americana em 1949. Conhecida por seu teatro engajado, Séverine Chavrier, atual diretora da Comédie de Genebra, vai além da obra cult de Faulkner com o espetáculo que inaugurou a programação do Festival de Avignon 2024 - a peça "Absalon, Absalon!" -, remixando a cena com imagens contemporâneas que vão do kitsch à ruína de um mundo em plena decomposição ética e estética.

O salto temporal encontra eco na interpretação vigorosa dos atores, que se desdobram em cenas cheias de violência e fúria."Abordo regularmente temas como a questão da herança de uma geração para a outra, as relações entre irmãos, a loucura como vingança social", diz a diretora.

"Absalon, Absalon!" é, antes de tudo, uma rapsódia de uma dinastia trágica no estado do Mississippi, com fazendeiros, negros e brancos nas plantações, as linhagens e os atavismos que acompanham a Guerra Civil, a derrota e a amargura. Em suma, uma tragédia desse "Sul" quase mitológico para a construção da identidade norte-americana. "Para este espetáculo, o gatilho veio quando percebi que, nas minhas peças anteriores, eu ainda não havia abordado certos assuntos essenciais, em especial a questão da coabitação, da violência e da legitimidade [ou não] da fundação de uma nação norte-americana", contextualiza.

Com produções multidisciplinares, a diretora francesa vem explorando, durante sua trajetória, questões como desigualdade social, identidade, conflitos contemporâneos e desafios ambientais, oferecendo ao público reflexões profundas sobre o mundo contemporâneo.

Utilizando uma multitude de linguagens, a diretora e seus comparsas em cena convidam a plateia a uma imersão num mundo de pretensos cowboys com armas de brinquedo que matam de verdade, verdadeiros clowns de uma "América" que se expande de norte a sul, e que nos deixa refletir, por exemplo, sobre os discursos de extrema direita que ganham eco, dentro e fora das redes sociais. 

Mesmo se o público de Avignon [e da cena contemporânea de teatro] já reconhece sem estranhamento recursos audivisuais que se proliferam ao vivo na cena, Chavrier não cai na mesmice da sobreposição de linguagens como um fim em si mesmo. Cada imagem complementa, sublinha ou isola dramaturgias específicas, trazendo o espectador para dentro de um pesadelo delirante, mas facilmente decodificável e nada redundante, que mantém a plateia em suspense durante as cinco horas de duração da peça, com dois intervalos.

"Usamos câmeras fixas para capturar diferentes ângulos da apresentação ao vivo, bem como uma operadora de câmera para acompanhar a ação. O vídeo é integrado à apresentação em tempo real, com efeitos fantasmagóricos para melhorar a atmosfera", detalha Chavrier. "A câmera fixa nos permite explorar a memória como um fantasma que assombra a cena, reforçando o aspecto faulkneriano da história", sublinha.

Em vez de seguir uma cronologia rígida ou reproduzir textualmente o livro, a diretora explora "diferentes configurações e relacionamentos entre os personagens". "Nossa abordagem se concentra mais nas relações e interações entre os atores, permitindo uma reinterpretação viva e dinâmica da obra de Faulkner", explica. 

Elementos biográficos reais

A trilha sonora da peça, elemento essencial no trabalho de Chavrier, preenche todo o espaço da caixa cênica, trazendo consigo os sons de trens e carros, o ruído de um projetor de filmes e a música ao vivo tocada pelo artista congolês Armel Malonga. "Incluo elementos biográficos reais do elenco para garantir a sinceridade das narrativas. Escolhi artistas cujas histórias familiares ou profissionais estão de acordo com os temas da peça, como a luta contra a dominação e a exploração", destaca a artista.

Complementando a incrível miríade de imagens, a presença de aves reais soltas em determinados momentos da cena fomentam o "pesadelo", especialmente quando, como na estreia no sábado (29), na abertura do festival, os animais decidiram extrapolar os limites do palco e vieram curiosos saudar a plateia, causando uma ponta de medo e vertigens alucinatórias dignas de experiências xamânicas com o peyote, cacto de onde se extrai a mescalina, substância amplamente citada na dramaturgia de Chavrier/Faulkner.

Outro elemento desestabiliza o público no meio de tanto tumulto e fúria: a presença singela de um ator mirim, que se mistura à cena primordial do pesadelo ou aparece travestido com máscaras dignas de filmes de terror norte-americano. "Na obra de Faulkner, o tema da infância está ligado à inocência, a uma forma de pureza perdida que contrasta com a falta e a culpa. Há também a questão da memória e os traumas associados a ela", conclui Séverine Chavrier.

A peça "Absalon, Absalon!" fica em cartaz no Festival de Avignon até o dia 7 de julho.

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