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'Dämon', ou como dessacralizar a cena para explodir os limites do teatro

30/06/2024 10h34

Sobre o linóleo vermelho que recobre o teatro mítico da Cour D'Honneur, um ator, sósia de João Paulo II, prescruta a cena, decorada com vasos sanitários e objetos de toalete íntima. Na cidadela medieval dos papas, o ato tem um significado mais que irônico, quase um "sacrilégio". Antes que a plateia caia na gargalhada, entra em cena a nudez imponente da diretora espanhola Angélica Lidell, que lava seu sexo numa bacia e joga a água nas pedras seculares de Avignon.

Marcia Bechara, enviada especial da RFI a Avignon

O tom está dado para a plateia de "Dämon", peça que tangencia uma homenagem a Ingmar Bergman, mas que serve sobretudo para explodir as fronteiras da cena, em todos os níveis possíveis e imagináveis. Nas laterais do palco, fileiras de cadeiras de rodas decoram a mis-en-scène, investindo-a de tensão e curiosidade, antecipando o coro de corpos velhos que desfilarão sobre elas, num zigue-zague hospitalar vertiginoso ao som de óperas do repertório clássico.

Iconoclasta, Angélica Lidell, artista que frequenta a cena principal do Festival de Avignon desde 2010, quando estreou os impactantes La casa de la fuerza e El año de Ricardo, não mede esforços para ressignificar o espaço - a Cour D'Honneur, a vitrine principal do evento criado em 1947 por Jean Vilar; o contexto - a imponência da presença ilustre de "ministros franceses" e autoridades -, e o tempo - bailando entre as memórias do cineasta sueco Ingmar Bergman, a encenação de seu funeral, escrita pelo próprio, sua história pessoal como encenadora e os "massacres" perpetrados em uma Avignon medieval.

Mas o primeiro alvo de sua homilia furiosa é certeiro, num gesto metalinguístico que apimenta a escritura da peça: os críticos de teatro... Apoiada pelos cadernos de Ingmar Bergman, onde o cineasta fazia anotações cáusticas sobre os jornalistas que o desprezavam ou humilhavam, Lidell projeta nos muros do Palácio dos Papas o nome de diversos críticos conhecidos do grand monde francês, para espanto, risadas e aplausos do público presente, numa vingança inédita e insuspeitada.

Assim desfilam pelas pedras seculares os nomes e veículos de cada crítico desafiado, enquanto a performer lê, em seu próprio caderno, trechos desabonadores de textos publicados na grande imprensa francesa. Ao final, a pergunta, dirigida ao jornalista em questão, no microfone: "Fulano, onde está você agora?". Gargalhadas chovem na plateia.

Derrubando tabus

Mas muito mais que uma punch line humorística, Angélica Lidell instaura desde o primeiro momento as bases para um dispositivo cênico extremamente coerente com sua linguagem teatral, cujas sementes já eram perceptíveis em "Liebestod", peça apresentada no Festival de Avignon em 2021.

Tornando a plateia cúmplice de sua vingança, ela explode a cena para falar não só de sua própria história, angústias e medos, mas vira o espelho para a plateia, num gesto que consolida esse pacto e nos coloca face a face com as nossas próprias inseguranças, nossa "submissão suicida". Tudo em "Dämon" é um convite para se rebelar, para não se calar, porque "hoje você vai onde deseja, mas, em breve, levarão você onde você não quer ir", numa alusão à velhice, à relação de poder com cuidadores, as instituições, o Estado.

Nada passa no pente fino revolucionário da artista: um papa João Paulo II com o sexo exposto e masturbado pela performer (uma referência à verificação manual do sexo dos papas, na Idade Média?); numa cadeira de rodas; uma criança - o futuro - de olhos vendados; as instituições europeias ridicularizadas; a magnificência dos velhos atores nus em cena, de pé, deslizando nas cadeiras de rodas ou se rebelando aos gritos sobre macas hospitalares, ou ainda a lembrança dos massacres cometidos em nome do patriarcado, da religião ou o silêncio consentido sobre as ditaduras: "especialidade dos meus compatriotas", diz a espanhola.

Mas a grande ironia Angélica Lidell reserva mesmo é para o fim da peça, quando, ao lado do suposto caixão de Ingmar Bergman, referência máxima autodeclarada da artista, ela desenrola um longo diálogo com o diretor sueco, que decidiu roteirizar seu próprio funeral ao se emocionar com as cenas da despedida de João Paulo II, depois de sua morte.

Alegria para conjurar a morte

Numa elocução surpreendentemente cálida depois da tempestade verbal e das cenas fortes, Lidell conversa com Bergman - quase num gesto de reconciliação - sobre o amor, a arte, a morte, o medo e a alegria. Na verdade, ao utilizar esse recorte metalinguístico, Lidell usa a presença do diretor como pretexto para conversar com a plateia [a coletividade], em plena consciência da elipse dramatúrgica que acaba de tecer. Ao conjurar a morte com a possibilidade da alegria, ela nos convida a sermos protagonistas também das nossas vidas.

É hora então de festejar, como Angélica Lidell sabe fazer. Ao som do hit "It's a Sin" ("É pecado", em tradução livre), dos Pet Shop Boys, atores, artistas, técnicos e plateias dançam numa enorme conflagração teatral, como se fosse possível enfim transcender a morte e a submissão a todos os tipos de tirania.

O espetáculo "Dämon" fica em cartaz no Festival de Avignon até o dia 5 de julho, antes de pegar a estrada pelo mundo afora.

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