Medo ou justa defesa? Como EUA tentam barrar 'invasão' de carros chineses
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Barreiras alfandegárias existem há séculos, as primeiras foram erguidas muito antes da primeira Revolução Industrial.
A proteção de produtos criados nos países que as ergueram é considerada algo natural, por mais que acusações sejam trocadas pelos lados importador e exportador. Agora, depois de uma crescente ameaça dos produtores de carros chineses, os Estados Unidos reagiram e decidiram dificultar a vida dos fabricantes de carros elétricos do país oriental.
Em um período em que a eletrificação em massa não está funcionando a contento no país norte-americano, os chineses encontraram soluções para driblar o preço mais elevado dos veículos elétricos. Pontos como a alta escala de produção, matérias-primas mais baratas, excesso de produtos manufaturados, incentivos e evolução tecnológica rápida se tornaram um pesadelo para montadoras dos Estados Unidos.
O termo "invasão chinesa" simboliza o sentimento das indústrias que enxergam a ameaça como algo iminente. A alegação mais comum é a impossibilidade de concorrer de maneira justa.
Imposto quadruplicado
Não é à toa que o erguimento de barreiras já deixou a fase de discussão para se tornar uma realidade. A administração do presidente Joe Biden estabeleceu taxação de 100% sobre veículos elétricos chineses (quatro vezes mais do que a anterior), e quem acha que acaba aí está enganado. Até as células das placas solares foram protegidas com 50% de taxação. Portanto, estamos falando da proteção de um "ecossistema" inteiro.
Outros elementos que compõem a rede de automóveis do tipo também foram sobretaxados. Podemos tomar por exemplo os 25% extras sobre as baterias de íon de lítio, segmento dominado, em sua maior parte, pelos fabricantes do país asiático. É só ver que poucos países participam desse mercado, um bom exemplo é a dupla sul-coreana LG e Samsung, além da japonesa Panasonic - que, juntas, têm 35% da produção.
Sozinha, a BYD toca em 19%, segundo dados de 2023 do site Clean Technica. Olha que nem estamos falando da maior produtora, a chinesa CATL, que tem 29% do total. Se formos levar em consideração as norte-americanas, a Faraday mal tem 2% do total de produtoras, ou seja, uma alternativa doméstica está longe de ser viável.
Voltando à Coréia do Sul e ao Japão, ambos são países com os quais os EUA têm boas relações comerciais, mas nem por isso são "amigos do peito".
A Administração de Comércio Internacional, em 2023, listou a Coreia do Sul como um país que pode ser atingido por barreiras comerciais. Por enquanto, nada foi oficializado e os fabricantes sul-coreanos estão há muito tempo enraizados no país, da mesma maneira que os japoneses, que pagam impostos relativamente baixos. Nos anos 80, a ameaça nipônica também gerou esse tipo de discussão.
E o México?
Diferentemente dos chineses, que buscam alternativas para driblar as taxações. Dentre elas, está a estratégica fabricação de produtos no México, nação que faz parte do NAFTA, acordo de comércio que abrange países da América do Norte, incluindo EUA e Canadá. Dali, automóveis poderiam ser isentados de impostos, entretanto, a manobra está sendo vigiada (e ameaçada) de perto. A BYD anunciou na semana passada, durante o lançamento da picape híbrida Shark no México, que pretende construir uma fábrica em solo mexicano.
Quanto ao fornecimento de baterias, será que seria apenas medo amplificado? A consultoria de transição energética Wood Mackenzie afirma que apenas 1% das importações de baterias vem da China. Mas nada impediria que ganhasse proporções muito maiores.
"O que os EUA colocaram na lei é a barreira fiscal. Aqui temos o imposto de 35% para veículos importados e, para eletrificados, a alíquota era de 0% e vai chegar a 35% em 2026. Os Estados Unidos, na tentativa de bloquear ou segurar muito as atividades dos chineses por lá, colocaram imposto de 100% para os veículos chineses. Tem imposto também para celulares e outros equipamentos, só que, para automóveis feitos na China, a alíquota é a maior dentre os demais produtos provenientes do país asiático", explica Cassio Pagliarini, sócio da consultoria Bright Consulting.
O maior objetivo é proteger a competitividade da indústria local.
"É uma guerra comercial entre esses dois países. Ao elevar as tarifas os EUA se protegem sob a alegação de proteção de empregos. Com o aumento nos preços dos veículos chineses (sob alegação de serem subsidiados pela China), as vendas despencam no mercado norte-americano. Com menores vendas, existe a perda de competitividade e maiores preços, o que ajuda indiretamente a indústria dos EUA", esmiúça Milad Kalume Neto, consultor automotivo.
Portanto, trata-se d eum movimento acompanhado pelo Brasil - a diferença é a escala, como o fato de nosso mercado eletrificado ainda ser incipiente.
Afora a questão geopolítica, a proteção de empregos dos EUA é o ponto mais importante - como é em qualquer nação, aliás.
A campanha "buy american", para incentivar a compra de produtos feitos nos Estados Unidos, foi reforçada durante a gestão de Donald Trump, um reavivamento diante da desindustrialização de vários setores da economia daquele país.
Durante o governo anterior, os carros elétricos chineses pagavam 27,5% de impostos, mas isso não é uma questão restrita à disputa entre Republicanos e Democratas - dado que, naquela época, a ameaça do segmento não era tão real, a preocupação nacional era com eletrônicos e possível espionagem do governo chinês. Atualmente, faz parte da política de investimentos em indústrias de altíssima tecnologia, abrangendo igualmente semicondutores e outros elementos.
Porém, se não era iminente naquela época, a discussão da taxação dos carros elétricos deve se tornar uma plataforma política para as eleições de novembro.
"Acredito que seja até questão da disputa eleitoral, porque o Trump já havia falado isso e o Biden, para não perder o bonde e não ceder esse tipo de argumentação na campanha eleitoral, antecipou-se e fez o imposto também, por mais contrassenso que isso possa ser frente ao liberalismo tão caro aos norte-americanos", analisa Cassio.
Portanto, Biden não quer abrir espaço para o nacionalismo industrial de Trump.
"Também não podemos descartar que esta proteção chegue bem em momento eleitoral, quando o ex-presidente Trump aponta com índices competitivos nas eleições à Presidência norte-americana. O efeito da proteção do mercado interno era sentido apenas na imagem de Trump e, com as condições impostas por Biden, o atual presidente e pré-candidato à reeleição passa a ser visto também como um protetor do mercado local", concorda Kalume.
Afora o mercado interno, a atuação dos fabricantes locais sobre as exportações também é sensível em termos de empregos e rendimento. De acordo com dados do governo estadunidense, os trabalhos suportados pela exportação de bens pagam de 13% a 18% a mais do que a média nacional, o que fortalece a economia. Sem falar que as exportações de automóveis dos EUA chegam a US$ 55 bilhões por ano. A China bem sabe disso, não é por acaso que é a maior exportadora de veículos do mundo.
De qualquer forma, a chegada de automóveis elétricos baratos e desenvolvidos impactaria a indústria norte-americana, pois a produção de modelos do tipo acessíveis ainda não aconteceu. A própria Ford planeja carros eletrificados mais baratos, o que representa uma guinada em relação aos planos de investir em SUVs e picapes. Um BYD Seagull poderia custar cerca de 1/3 um elétrico estadunidense.
A aliança American Manufacturing trata o tema como uma ameaça de extinção da indústria automotiva nacional, que responde por 3% do PIB do país. Somado a isso, os mais de 1 milhão de empregos gerados pela cadeia de produção pagam 29 dólares por hora, bem acima da média nacional. Somente no período de 2009 a 2022, de acordo com a organização, a China teria investido US$ 29 bilhões na produção de carros elétricos, uma estratégia diferente da anterior, que pregava a exportação de automóveis baratos e de qualidade que não conseguia concorrer de igual a igual com fabricantes ocidentais. O jogo virou.
No outro lado do Oceano Atlântico, a União Europeia discute a taxação dos elétricos provenientes da China. Contudo, por lá, os argumentos de taxação são combatidos por alguns como algo que pode atrapalhar os planos de descarbonização da frota. Nada impede mudanças de rota.
A BYD está se instalado no continente e também na Tailândia, onde terá acesso a outros mercados, uma vantagem dos acordos comerciais firmados pelo país do Sudeste Asiático.
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