Cidade em SP ignora TJ e mantém escola cívico-militar de associação da PM
A prefeitura de Santa Fé do Sul, no interior de São Paulo, descumpriu uma liminar do Tribunal de Justiça que barra a criação ou existência de escolas cívico-militares na cidade. O município mantém uma unidade nesse modelo e investe R$ 706,3 mil a mais por ano do que em uma escola regular.
O que aconteceu
A Justiça concedeu liminar pela suspensão de uma legislação de 2022 sobre o modelo cívico-militar nas escolas municipais no estado. A decisão ocorreu em 3 de abril deste ano, atendendo a pedido da Apeoesp (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo).
A prefeitura de Santa Fé do Sul ignora a liminar do TJ-SP há quase três meses e mantém a única escola que adota o regime de ensino.
O formato foi implementado por uma associação de oficiais da PM para 240 alunos, na escola Thereza Siqueira Mendes, em fevereiro deste ano. A Defenda PM (associação de oficiais da Polícia Militar de São Paulo) fechou contrato anual com a prefeitura, com parcelas mensais de cerca de R$ 58,8 mil (leia mais abaixo).
As escolas cívico-militares foram turbinadas no governo de Jair Bolsonaro. O tema, defendido por apoiadores do ex-presidente, ganhou uma diretoria dentro do MEC (Ministério da Educação) — em 2019, foi criado o Pecim (Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares).
O governo Lula (PT) ainda não decidiu o que fará com as escolas que já seguem esse modelo.
Procurada seis vezes pela reportagem desde 23 de maio, a prefeitura de Santa Fé do Sul não respondeu aos questionamentos.
Nós vamos continuar monitorando, porque não vamos admitir que algo seja imposto. É um movimento que vai na contramão do que precisamos. Os alunos precisam ter uma formação sólida."
Bebel Noronha, deputada estadual (PT-SP) e presidente da Apeoesp
Como é o modelo aplicado em Santa Fé do Sul
O método EFM foi desenvolvido por três policiais militares. A sigla é composta pelas iniciais dos nomes dos coronéis Ernesto Puglia Neto, Fábio Rogério Cândido e Marcio Cortez Maya Garcia.
Segundo os criadores, o modelo não tem relação com o Pecim. Justificam que não é voltado para escolas com baixo resultado no Ideb (principal indicador da educação no Brasil), nem de áreas de vulnerabilidade.
Policiais militares são responsáveis pela parte "disciplinar" da escola, enquanto a pedagógica fica a cargo dos professores e diretores. Dessa forma, a estrutura segue o programa criado pelo governo Bolsonaro em 2019.
Uma unidade particular em São José do Rio Preto (SP) também adotou o método. A Defenda SP, fundada em setembro de 2016, se define como "sem fins econômicos, apartidária e laica" e diz ter 2 mil oficiais em seu quadro de associados, entre agentes da ativa, da reserva e reformados.
A entidade também menciona uma escola pública em Novo Horizonte (SP) "em breve". A prefeitura local informou que a implantação do colégio será feita no segundo semestre deste ano para alunos do 6º ao 9º ano. No mês passado, as autoridades fizeram reuniões com pais e responsáveis dos alunos da rede municipal.
O que diz o criador do modelo
O coronel Ernesto afirmou ao UOL que não tinha dados para comentar sobre Santa Fé do Sul não ter cumprido decisão liminar do TJ.
É a disciplina como meio, não como fim. A escola não é quartel, é uma premissa muito importante. O aluno não está ali para ser soldadinho. Respeitamos muito isso, nosso policial tem treinamento e é frisado que a escola não é um quartel, nem reformatório."
Ernesto Puglia Neto, coronel da PM, sobre o método EFM
Professores foram demitidos após mudança
Professores disseram que não houve transparência para os funcionários, enquanto as negociações aconteciam para a implementação do modelo. Eles falaram sob a condição de anonimato.
Um dos educadores afirmou que ficou sabendo da mudança pela internet.
No ano passado, a coordenadora começou a ficar com a gente nos intervalos. Toda vez que saía algum assunto mais político, éramos cortados, ela falava para não falarmos sobre essas coisas porque estragava o clima."
Ex-professor da Escola Municipal Professora Thereza Siqueira Mendes
Precisamos de pessoas que saibam ter empatia, criticidade, pensar no próximo e em como a nossa sociedade é diversa. Não robotizar todo mundo, vestir igual, andar igual. Se não fossem professores que olhassem para mim e dessem boas instruções, sem me excluir por ser diferente, eu não estaria aqui hoje."
Ex-professor da escola
Lula não revogou programa de Bolsonaro
O MEC afirmou que a implementação de novas escolas cívico-militares não será prioridade do governo Lula. "O MEC discutirá com governadores e prefeitos, que já implementaram as unidades, de forma democrática e respeitosa, o que será feito com as escolas", diz a nota. A pasta não comentou sobre o caso de Santa Fé do Sul.
O governo Lula, no entanto, não revogou o Pecim da gestão Bolsonaro. E ainda não decidiu o que será feito com o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares.
A falta de decisão do governo federal gera incertezas, afirma Salomão Ximenes, professor de direito e políticas públicas da UFABC. Ele aponta que o projeto implementado em Santa Fé do Sul é uma "militarização 2.0".
Em Santa Fé do Sul, eles conseguiram a criação de uma lei municipal. O que estão fazendo é mobilizar redes de contato desse campo mais próximo de conservadorismo de direita, do bolsonarista raiz..."
Precisamos de uma decisão do Estado. É a cartilha de funcionamento do fascismo, que depende de uma cultura do pânico, moral ou social, que coloca quase como uma necessidade a criação de políticas de segurança e militarização."
Salomão Ximenes, professor da UFABC (Universidade Federal do ABC)
Eduardo Bolsonaro visitou escola
O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL) visitou a escola municipal em março, um mês após o acordo com a prefeitura de Santa Fé do Sul.
Ele foi recepcionado pelo prefeito Evandro Farias Mura, eleito em 2020 pelo PSL, antigo partido de Bolsonaro. Nas redes sociais, a prefeitura informou que o deputado foi convidado a "conhecer de perto o modelo de educação 100% municipal".
Prefeitura não respondeu
O UOL enviou sete perguntas para a assessoria de imprensa de Santa Fé do Sul sobre a escola cívico-militar e a decisão do Tribunal de Justiça. O primeiro contato aconteceu por e-mail no dia 23 de maio.
Sem retorno, a reportagem voltou a procurar a administração municipal por e-mail nos dias 12 e 20 de junho.
Foram feitas também tentativas de contato por telefone em três ocasiões diferentes — em uma delas, uma funcionária informou que o tema estava com a "área responsável", mas não retornou.
*Colaborou o repórter Caê Vasconcelos.