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Há 10 anos, o Brasil pegava fogo nas ruas: 'Junho de 2013 não acabou'

do UOL

Do TAB, em São Paulo

12/06/2023 04h00

O aumento da tarifa de transporte foi o pavio que acendeu uma revolta nas ruas do Brasil, com consequências até hoje, dez anos depois.

Aquele junho mobilizou o país como nunca antes ou depois, testemunhou passeatas que viravam a noite, viu cenas de violência das polícias e dos black blocs, teve o Congresso Nacional invadido e a final da Copa das Confederações, entre as seleções Brasil e Espanha em um remodelado Maracanã, com o entorno enevoado de gás lacrimogêneo.

Para refletir sobre esse impactante acontecimento, TAB ouviu intelectuais e jornalistas que testemunharam ou escreveram sobre as Jornadas de Junho, e compôs um painel de análises sobre o levante urbano que encurralou governantes e mexeu com toda a estrutura da democracia brasileira na década seguinte.

Junho de 2013 desmentiu a separação entre o real e o virtual, confirmou nossa nova forma de sociabilização e de formação política. Prova disso é que havia muito cartaz individual, o que refletia o que cada pessoa queria expressar, sem lideranças de grupos

Marcos Nobre, professor da Unicamp e pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento)

O clichê do "ovo da serpente" esconde o que foram de fato aqueles protestos, afirma Marcos Nobre. "Essa metáfora tenta livrar a cara do sistema político, suas ações e omissões. O PT foi interpretando junho de 2013 progressivamente como algo contra ele, como se o impeachment da Dilma, a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro estivessem já ali aninhados."

Para ele, aquele junho continua acontecendo. "O que mais ouvi na rua foi 'estou vendo a história acontecer'. Naquele momento, instituições estavam consolidadas, mas a população estava querendo transformá-las em algo mais democrático", conta o professor, que esteve em vários protestos na cidade de São Paulo, participando e colhendo material para seus livros.

"A política tradicional tinha perdido na época a conexão com a população, ficou em modo de autopreservação durante as manifestações e, no final, se voltou contra ela. Os partidos tinham perdido seu contato com a base. Como o sistema não deu respostas, abriu espaço para movimentos antissistêmicos mais tarde, com a ascensão da extrema direita", aponta.

2013 é a semente do 8 de janeiro de 2023. Foram ataques às instituições e à política tradicional. Claro que o ato deste ano foi muito mais organizado, com participação de setores das Forças Armadas, do governo anterior e da própria Polícia Militar do Distrito Federal. Mas 2013 marca o início de um período que não foi bom para a democracia

Reinaldo Azevedo, comentarista político do UOL

Pessoas pulando sobre a marquise do Congresso e tentando incendiar o palácio do Itamaraty são as imagens que ficaram dos protestos de dez anos atrás na mente do colunista político Reinaldo Azevedo. Passada uma década, as cenas foram ainda mais fortes, com depredação dos prédios dos Três Poderes.

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"Desde o começo não vi com bons olhos esse movimento", diz Azevedo. "Na época, eu era muito crítico ao governo Dilma, e vinham e me falavam: 'Para de bater nos caras. Quem está se danando é a Dilma'. Mas quem estava se danando, de verdade, era a democracia."

Ele classifica como "tolice gigantesca" defender o chamado "socialismo da catraca" e acreditar que "a política tem mediações demais e temos que fazer política direta". Ao contrário do que fez o MPL (Movimento Passe Livre), os movimentos devem aderir aos canais de diálogo com as instituições, sustenta Azevedo.

"A democracia representativa é a melhor fórmula que temos. Fora dela, por enquanto, é o caos", afirma o articulista. "Esse sentimento antipolítica nos levou ao bolsonarismo", completa.

Junho de 2013 foi uma surpresa, uma euforia e um momento de grande medo. Foi o primeiro movimento nacional depois do período da redemocratização

Lilia Schwarcz, antropóloga, historiadora e professora da USP

O levante de 2013 "mostrou a potência da sociedade civil brasileira" e "nos ensinou que a cidadania é uma franquia da democracia". Lilia Schwarcz estava como professora visitante na Universidade de Princeton (EUA) quando eclodiram os protestos, mas voltou para o Brasil para entender "que vertigem era aquela".

Ela logo associou o movimento a outros ocorridos pelo mundo após a crise financeira global de 2008, como o Occupy Wall Street, a Primavera Árabe e revoltas populares na Grécia e na Espanha.

"Depois, as jornadas passaram a defender pautas muito difusas. Pautas que eu concordava ou não concordava, mas que na época pareciam possíveis", recorda-se. "2013 virou uma boca sem dentes: a pauta de direito à cidade foi muito sequestrada por grupos de extrema direita. O movimento deixou de ser espontâneo. Houve um claro agenciamento político por grupos retrógrados a partir de 2014. Talvez nós poderíamos ter visto, mas não vimos, que já na ocasião de 2013 existiam duas avenidas."


Mudou tudo. A sociedade mostrou suas inquietudes e deu adeus à apatia. Ficou superpolitizada e supermobilizada, às vezes até em um sentido ruim.

Pablo Ortellado, professor de gestão pública da USP

Começando pela "Revolta do Buzu" em 2003, em Salvador, os protestos de jovens contra o aumento no transporte urbano já completavam uma década naquele momento, passando por levantes em Vitória, Florianópolis e Rio, entre outras cidades. Pablo Ortellado pesquisou o assunto e escreveu a respeito em livros, jornais e revistas.

Ele lembra que o MPL já havia protagonizado protestos em São Paulo em anos anteriores, mas sem ganhar dimensão. "É uma causa muito popular, porque beneficia a todos os cidadãos e dá acesso a outros serviços na cidade, como educação, saúde e cultura."

Essa reivindicação específica foi a força e a fraqueza do MPL, avalia Ortellado. "O movimento nasceu para não ser cooptado pelos políticos e para não ampliar a pauta", diz. "Se você olhar somente para a campanha contra o aumento da tarifa, foi uma enorme vitória", complementa.

"Mas extravasou, virou outra coisa e deu frutos durante muitos anos. Os dois ciclos de ocupações de escolas são filhotes daquele junho. O movimento sem-teto se projetou, o direito à cidade entrou em pauta", lembra.

Deu também nos protestos anticorrupção e pró-impeachment de 2015, que tinham um público mais velho, com média de idade acima dos 45 anos, segundo seus levantamentos. "A sociedade seguiu inquieta, mas a juventude não tem mais o protagonismo", afirma.

Como efeito colateral, essa agitação permanente acabou por despertar "um populismo intolerante, muito extremo e que tensiona a democracia liberal". E completa: "O bolsonarismo é impensável antes de junho de 2013."

Os dez anos de junho de 2013 não é uma data de algo que ficou no passado. É um processo em andamento e que ainda estamos tentando entender

Sabrina Fernandes, socióloga e ativista

Autora do livro "Sintomas mórbidos: a encruzilhada da esquerda brasileira", publicado em 2019, Sabrina Fernandes afirma que "aquele momento de erupção de gente na rua" era cheio de contradições, com "muitas vozes e visões diferentes ao mesmo tempo".

"São muitos medos e expectativas ao redor, e nós vemos consequências diretas até hoje", avalia. Para muitos brasileiros, fazer política passou a ser visto como algo negativo e, nesse aspecto, houve uma forma de despolitização de parte da população a partir desse período. "Como se tudo o que está errado no país fosse provocado pelos políticos." Vêm daí slogans que se acoplaram ao bolsonarismo como "escola sem partido" e "meu partido é o Brasil".

Ela considera que o país mudou "muito e pouco". Pouco, no sentido da desmobilização atual para mudanças estruturais. Mas muito, pela série de antagonismos criados. "A direita teve a habilidade de capturar e esvaziar as pautas que estavam nas ruas, com um discurso que, na verdade, não quer mudar nada", afirma.

Para ela, é necessário politizar a discussão, sem abrir mão da mobilização. "É preciso botar o bloco na rua, sim, pois não existe democracia sem organização popular, e organização popular não se faz dentro de uma caixinha."

Vídeos com a íntegra das entrevistas com Reinaldo Azevedo, Lilia Schwarcz, Marcos Nobre e Pablo Ortellado serão publicados a partir de hoje, ao longo da semana.

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