8º homem mais rico do país virou defensor da natureza após Bolsonaro
João Moreira Salles é jornalista, editor, documentarista - e, mais recentemente, ambientalista. Essa é uma identidade relativamente nova para a oitava pessoa mais rica do Brasil, um homem urbano, herdeiro de família banqueira, cuja fortuna soma quase 21 bilhões de reais, de acordo com a lista global de biolionários da Forbes. João não tinha um histórico ecológico - mas agora ele "vê" a floresta, como diz, e enxerga nela um verdadeiro milagre.
"Acho que sou efeito do Bolsonaro", diz. "Aconteceu logo no primeiro ano do seu governo, cujo projeto era evidentemente o da devastação da Amazônia. Percebi que boa parte das pessoas estava completamente alheia a esse problema - e que eu me incluía nessa lista."
O documentarista, que até então não conhecia a Amazônia, resolveu então passar um tempo no Pará, onde se encontrou com indígenas, ambientalistas, colonos, cientistas e donos de pastagens para coletar as histórias da maior floresta tropical do mundo. A junção desses relatos, publicados originalmente na revista Piauí, saiu no fim de 2022 em forma de livro: "Arrabalde: Em Busca da Amazônia". Agora ele tem uma empresa de reflorestamento e defende que, para preservar a maior floresta tropical do mundo, ela precisa se tornar patrimônio cultural nacional.
Ecoa - Qual é a sua relação com a natureza? Você cresceu cercado dela?
João Moreira Salles - Eu sempre fui uma pessoa urbana, sempre morei na cidade. Essa minha sensibilidade maior para a destruição da Amazônia é mais recente. Acho que sou efeito do Bolsonaro. Fora isso, eu tenho uma relação muito importante com minhas cachorras. É uma coisa boba de dizer, mas já que a gente enveredou por esse caminho meio patético, posso dizer que é uma relação muito forte. Eu olho para elas e elas olham pra mim e evidentemente tem uma comunicação - mas também tem um abismo. E isso me fascina. Eu sei que elas sabem de coisas que eu jamais saberei. E as coisas que elas sabem têm a mesma importância das coisas que eu sei. A minha tecnologia não é melhor do que a delas, é diferente apenas. Tem uma relação de não hierarquia, de amor profundo, de respeito. É uma coisa muito importante para mim. Talvez isso também esteja na raiz de todo esse movimento que venho fazendo nos últimos anos.
Você diz que era mais um dos brasileiros que vivia alheio ao que acontecia na Amazônia. Por que você acha que esse é um comportamento tão comum no resto do país?
Essa é uma grande questão. A indiferença que existe pela floresta, pelo bioma e por todas as criaturas que vivem lá facilita a sua destruição. Aquele território não foi sacralizado, não tem valor na nossa imaginação. É uma questão de cultura mesmo. É claro que se tem grandes escritores de lá, que grandes filmes foram feitos sobre a Amazônia - mas não são obras que se tornaram hegemônicas na nossa imaginação. Não estão no veio central daquilo que nos define como brasileiros. Eu me lembro que entre as muitas tragédias de 2019, houve também a contaminação das praias do Nordeste com óleo [mais de 5.000 toneladas de óleo, oriundas de um petroleiro grego, foram derramadas sobre a região]. Houve uma comoção nacional porque as praias são algo que nos definem. A gente é um país tropical e praieiro - a praia está na música, na literatura do Jorge Amado, em todo lugar. Mas com a floresta ninguém se importa.
Eu acho que ser indiferente à Amazônia sempre foi funcional. Não se deixar contaminar por aquilo facilita o ato de destruição, porque só assim você não carrega o ônus moral de ter destruído alguma coisa que merece ser preservada. João Moreira Salles
Qual o papel dos povos originários nessa mudança simbólica?
Eu acho que a gente não deve ser condescendente e dizer "vamos dar voz" aos indígenas. Eles são, de fato, a resistência. E a coisa só vai se resolver quando eles ocuparem os espaços de poder. Estou fazendo um documentário com a Txai Suruí [líder e ativista indígena do povo Suruí]. Nele, eu conto a história de como ela se deu conta de que precisava disputar as tais "narrativas".
Com 16, 17 anos, ela pediu para ser mandada para o exterior para aprender inglês. Assim, foi parar na Irlanda, onde morou durante um ano. Diz ela que chorava de saudade todos os dias, mas que aprendeu a língua. E em 2019, na COP de Glasgow, quando decidiram que uma representante dos povos originários da Amazônia iria abrir a conferência, ela estava pronta para discursar. Ela recebeu o convite três dias antes da COP, escreveu o discurso, subiu naquele palco e o resto a gente já sabe.
Esse movimento é uma das poucas boas notícias dos últimos quatro anos. Porque também é um paradoxo, né? Quando o Estado se torna extraordinariamente violento, você cria uma reação enfática a esse Estado, com lideranças organizadas. De certa maneira, o Bolsonaro fertilizou a sociedade civil organizada. Muita gente se sentiu impelida a de fato ir para a trincheira.
Além de escrever sobre a Amazônia, você também é cofundador e conselheiro de uma empresa de restauração florestal, a re.green. Você poderia contar um pouco sobre essa iniciativa?
A re.green nasceu do trabalho de um pesquisador chamado Bernardo Strassburg, que publicou dois artigos na revista Nature identificando quais seriam as áreas ambientais prioritárias a serem restauradas no mundo. Ele definiu essas áreas a partir de uma série de critérios, como biodiversidade, potencial de captura de carbono, criação de renda e emprego etc. Independente de qual critério você escolher, o Brasil é o grande hotspot de restauração, junto com um pedaço da África atlântica. Se você quer restaurar uma floresta para capturar carbono e promover a biodiversidade, você não vai fazer isso na tundra siberiana porque lá as árvores demoram 100 anos pra crescer - você faz isso no Brasil, porque aqui elas crescem em 10, 15 anos. Por enquanto, não existe tecnologia melhor para captura de carbono do que uma árvore que cresce.
Em 2014, os tribunais argentinos deram a uma orangotanga do zoológico de Buenos Aires o "direito de sujeito não humano", para que ela pudesse ser libertada por meio de habeas corpus. Em 2017, foi a vez de um rio na Nova Zelândia, o Whanganui, ter seus direitos equiparados aos de um ser humano, para ser preservado. Você acha que esse caminho legal, que estende alguns tipos de "direitos humanos" a animais ou ecossistemas, pode ser uma estratégia também para a proteção da Amazônia?
Eu não sou um especialista em Amazônia, e certamente não sou um especialista em filosofia moral, mas eu preciso dizer que o argumento me é muito simpático. Eu acho que a questão moral fundamental se resume a uma só pergunta, que foi formulada por um filósofo inglês, chamado Jeremy Bentham. Se animais têm a capacidade de sofrer, que direito você tem de fazer com que criaturas sencientes sintam essa dor em teu próprio benefício? Acho que precisamos enfrentar essa questão e dar uma resposta para ela.
[Dois dias depois da entrevista, João pede para completar a resposta, por e-mail.]
Fiquei pensando na pergunta que você me fez. Me parece legítimo que aqueles que sofrem possam ser protegidos daqueles que os fazem sofrer. Mas o que dizer da destruição de rios, da poluição dos céus, do abate de árvores que, até onde sabemos, não têm capacidade para sofrer? Minha impressão é de que também aqui existe um argumento sólido em defesa da legitimidade processual. Quem destrói uma ponte, um gasoduto ou uma torre de energia responde judicialmente por seus atos. São crimes contra a infraestrutura básica de uma sociedade. Pois bem, a natureza também deve ser considerada como infraestrutura, entendida aqui como o pilar sobre o qual todo o resto se assenta. E o resto, aqui, é a própria vida. Logo, destruir a Amazônia é condenar a Terra a virar outra coisa. Por tudo isso, o tribunal é o lugar certo para arbitrar esse tipo de agressão.
Você tem uma visão otimista ou pessimista para o futuro da Amazônia?
Eu sou da tese de que o otimismo é uma estratégia. Eu conheci pessoas extraordinárias na Amazônia, e que são extraordinárias porque são otimistas, porque se não o fossem, teriam sucumbido. E eu aprendi isso com elas, então, sim, eu sou otimista.
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Reportagem Karin Hueck | Edição Fred Di Giacomo