O dia em 1875 em que os Estados Unidos intervieram a favor da Venezuela contra o Reino Unido
Em 17 de dezembro de 1895, o então presidente americano Grover Cleveland criou uma comissão para ajudar a Venezuela em uma disputa com a superpotência da época: o Reino Unido.
Desde que Hugo Chávez assumiu a presidência da Venezuela em 1999, as relações entre os Estados Unidos e o país sul-americano têm sido tensas.
Mas nem sempre foi assim. Durante grande parte do século 20, a Venezuela foi um dos maiores aliados dos Estados Unidos na América Latina e esse relacionamento próximo fez dela o maior fornecedor de petróleo à superpotência mundial por um curto período na década de 90. Hoje, esse posto é ocupado pelo Canadá.
Também ajudou empresas venezuelanas, como a Citgo, a ter sucesso nos Estados Unidos e americanas, como a ExxonMobil, a ganhar muito dinheiro na Venezuela.
Mas exatamente um século antes, em 1895, a aliança entre os dois países atingiu talvez um de seus pontos mais altos, quando os Estados Unidos enfrentaram a superpotência da época, o Reino Unido, a favor dos interesses venezuelanos e na rejeição do imperialismo europeu.
Sob a Doutrina Monroe, atribuída ao ex-presidente dos Estados Unidos James Monroe, que clamava por uma "América para os americanos", os Estados Unidos intervieram na disputa sobre a fronteira entre a Guiana Inglesa (atual Guiana) e a Venezuela.
Foi uma das poucas vezes na história em que a "relação especial" entre as duas potências anglo-saxãs foi rompida. E o motivo foi a Venezuela.
O pomo da discórdia
Com 159,5 mil quilômetros quadrados ricos em recursos naturais, o Essequibo foi durante séculos o foco de uma disputa territorial histórica.
Foi inicialmente controlado pelos impérios espanhol e holandês, que mais tarde o cederiam aos britânicos.
Segundo documento do Departamento de Estado dos Estados Unidos, a disputa entre Caracas e Londres começou oficialmente em 1841, quando o governo venezuelano denunciou uma suposta incursão britânica em solo venezuelano.
Em 1814, o Reino Unido havia adquirido a Guiana Inglesa por meio de um tratado com a Holanda, mas o pacto não definia a fronteira oeste do território e por isso os britânicos nomearam o explorador Robert Schomburgk em 1840 para determinar esse limite.
Pouco depois, foi inaugurada a chamada "Linha Schomburgk", um polêmico traçado que reivindicava quase 80 mil quilômetros quadrados adicionais, área equivalente a duas vezes à do Estado do Rio de Janeiro.
Ao mesmo tempo, a Venezuela ? valendo-se dos limites estabelecidos na época de sua independência ? garantiu que sua fronteira se estendesse a leste do rio Essequibo, reclamando assim dois terços da então colônia britânica.
Gota d'água
Mas a linha da fronteira não parou por aí. Anos mais tarde, quando se descobriu a existência de ouro na área disputada, o Reino Unido buscou estender a fronteira ainda mais, adicionando 85 mil quilômetros quadrados à sua colônia.
Para a Venezuela, essa foi a gota d'água. Seu governo decidiu então romper as relações com Londres e pedir ajuda aos EUA, solicitando à superpotência que colocassem em prática a Doutrina Monroe, que desde 1823 estabelecia que qualquer tentativa europeia de interferir com Estados soberanos nas Américas seria vista como um sinal de uma "disposição hostil" frente a Washington.
Os Estados Unidos responderam expressando preocupação, mas inicialmente fizeram pouco para facilitar uma solução para o conflito.
Mas depois da insistência venezuelana e pressão do então presidente dos Estados Unidos Grover Cleveland e de seu ex-embaixador em Caracas, em janeiro de 1895, a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos propôs a Resolução 252 ao Congresso, recomendando que a disputa fosse resolvida em arbitragem internacional.
Cleveland já havia declarado em uma declaração polêmica que a linha de fronteira no Essequibo havia sido expandida "de uma forma misteriosa".
A luta pela influência na América Latina
Além da questão do Essequibo, a intervenção dos Estados Unidos ocorreu no contexto de uma luta entre Washington e Londres para manter a América Latina em suas esferas de influência.
"Uma espécie de transição gradual entre o domínio britânico e americano já estava ocorrendo. Naquela época, a Grã-Bretanha ainda era muito mais influente do que os Estados Unidos na América Latina", diz Benjamin Coates, professor de História na Wake Forest University na Carolina do Norte (EUA), à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC.
"E assim foi até pelo menos o fim da Primeira Guerra Mundial ou mesmo logo depois", acrescenta.
No final do século 19, também foi realizada a Divisão da África e, segundo Coates, os Estados Unidos temiam que as potências europeias tentassem dividir a América Latina da mesma forma que fizeram com o continente africano.
A decisão de defender a Venezuela também foi política. Entre 1893 e 1897, os Estados Unidos viviam uma grande depressão econômica e uma das críticas da oposição ao presidente Cleveland era que ele não destacava seu país como potência.
Para Coates, a ironia da questão é que Cleveland foi na verdade "um dos presidentes mais anti-imperialistas" que os Estados Unidos já tiveram.
"Ele não estava necessariamente tentando exercer algum tipo de controle imperial dos EUA sobre a América do Sul, mas queria evitar que os britânicos se expandissem ainda mais", diz o especialista.
Prova de fogo para a Doutrina Monroe
O historiador Matthew Pinsker, do Dickinson College, na Pensilvânia (EUA), explica que a Doutrina Monroe foi, desde sua fundação e por mais de 70 anos, "honrada mais em sua violação do que na realidade".
Mas a disputa pelo Essequibo mudou essa dinâmica.
"Parte da razão pela qual os Estados Unidos se envolveram foi porque um ex-embaixador dos EUA na Venezuela estava exercendo pressão em nome dos venezuelanos. Trinta anos se passaram desde o fim da guerra civil e o país estava mais forte e determinado em projetar poder. Também havia a esperança de que os Estados Unidos se tornassem uma potência mundial", diz Pinsker à BBC News Mundo.
De fato, o escritor, advogado e ex-embaixador dos EUA na Venezuela William Scruggs desempenhou um papel fundamental na campanha para ajudar o país ao publicar um panfleto controverso intitulado British aggressions in Venezuela; or The Monroe doctrine on trial (Agressões britânicas na Venezuela; ou A doutrina Monroe em julgamento, em tradução livre para o português).
Ventos de guerra
Embora irritado com a intervenção americana, o Reino Unido estava muito distraído com vários conflitos que enfrentou ao redor do mundo, especialmente na África do Sul, para se concentrar neste assunto.
No entanto, o ex-primeiro-ministro britânico, Lord Salisbury, respondeu à pressão dos EUA alegando que a Doutrina Monroe não tinha validade como lei internacional.
Mas Cleveland não deu o braço para torcer e essa resposta o enfureceu.
Em 17 de dezembro de 1895, em sessão extraordinária no Congresso dos Estados Unidos, o presidente solicitou a criação de uma comissão que teria a tarefa de investigar exaustivamente os limites das nações em disputa e propôs que as conclusões dessa comissão fossem levadas a cabo "de qualquer forma".
A proposta foi aprovada por unanimidade e rumores de guerra com o Reino Unido começaram a circular na imprensa americana.
Londres sabia que não tinha condições de entrar em uma nova guerra com os Estados Unidos e acabou aceitando a intervenção em sua ex-colônia.
Foi assim que os Estados Unidos, representando a Venezuela, e o Reino Unido firmaram em 2 de fevereiro de 1897 um tratado em Washington para submeter a controvérsia à arbitragem internacional.
A Venezuela estava convencida de que a Justiça estaria do seu lado, mas a comissão acabou julgando em 3 de outubro de 1899 a favor do Reino Unido, estabelecendo a "Linha Schomburgk" como fronteira entre os dois territórios.
Uma disputa não resolvida
A polêmica decisão é conhecida hoje como 'Laudo Arbitral de Paris'.
"O painel de arbitragem dominado pelos americanos acabou cedendo a maior parte do território disputado aos britânicos. A mediação mostrou a força dos Estados Unidos na América Latina e também foi um ponto de inflexão para as relações britânico-americanas no caminho para a "relação especial" entre os dois países", explica Pinsker.
O historiador Benjamin Coates diz acreditar que a Venezuela teve sucesso em fazer com que os EUA interviessem e os ajudasse, mas lamenta que, uma vez que Washington entrou na briga, "ignorou completamente os interesses venezuelanos".
Muito mais tarde, na década de 1950, surgiram algumas evidências que falavam da cumplicidade entre os delegados britânicos e o juiz russo daquele tribunal em Paris, cujo voto foi decisivo para a decisão contra a Venezuela.
Em resposta a essas revelações, em 1962 a Venezuela denunciou a sentença como "nula e sem efeito" e reativou a reivindicação do território perante a Organização das Nações Unidas (ONU).
Após a denúncia venezuelana, foi assinado o Acordo de Genebra, segundo o qual a área é controlada pela Guiana, embora sua soberania seja reivindicada pela Venezuela.
O acordo, que tinha caráter temporário, previa o prazo de 4 anos para dirimir a controvérsia.
No entanto, suas diretrizes continuam em vigor e a disputa pelo território de Esequiba continua.
Mas a Venezuela não tem mais o apoio de Washington e seus sonhos de controlar uma região rica em recursos naturais parecem ter desaparecido, por enquanto.
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