Professor negro processa FGV por erro em cotas de concurso público de SP
Os cabelos do professor de história André Luiz descem pelas costas em dreads finos, que ganham mais destaque dado o seu 1,88m de altura. Este detalhe, somado à sua pele retinta, não deixa dúvidas: ele é um homem negro.
Ainda assim, o docente teve negada a utilização de políticas afirmativas de cotas raciais em um concurso público para a rede municipal de São Paulo. A disputa judicial para que o professor tenha sua negritude reconhecida já se arrasta por quase quatro anos e parou no STJ (Superior Tribunal de Justiça). Não fosse a confusão, André, hoje sem ocupação devido à pandemia de coronavírus, poderia estar empregado em uma carreira com remuneração de R$ 2.079.
Responsável pela realização do processo em 2016, a FGV (Fundação Getúlio Vargas) obteve vitórias na primeira e segunda instância da Justiça paulista. Porém, um parecer do Ministério Público Federal pode mudar o curso do processo. Para os procuradores da República, a FGV e a Prefeitura de São Paulo devem regularizar a inscrição de André Luiz como "candidato participante da política afirmativa de afrodescendentes do concurso".
Negritude negada
O professor André Luiz preferiu não ser identificado porque a decisão ainda aguarda sentença do STJ. Ele acusa a FGV, responsável pelo edital, aplicação e correção da prova, de ter desconsiderado sua negritude. O edital reservava 20% das vagas para candidatos que se autodeclarassem negros, negras ou afrodescendentes.
Para conseguir a entrada pelas cotas, o candidato precisaria apenas enviar um documento assinado no qual se autodeclara negro para a sede da instituição, em Muriaé (MG), como indicado no edital. André diz ter feito isso. A FGV nega. Afirma que "o candidato não teve sua inscrição pela política de cotas rejeitada pelos motivos que alega e, sim, por não ter cumprido o edital".
'Achei que se resolveria por e-mail'
André fez a prova em dezembro de 2016. Ele não passou, mas o que o deixou mais surpreso no resultado foi outro detalhe. O edital especificava que todos os candidatos negros teriam direito a ter corrigidas as provas de múltipla escolha e a discursiva, algo como uma pequena redação. Não foi o caso dele.
Como a prova discursiva era uma etapa eliminatória para os concorrentes por cotas, ele foi desclassificado por ter as respostas desconsideradas para correção. Já pelo critério da ampla concorrência, ou seja, desconsiderando as políticas afirmativas, ele não conseguiu obter a nota de corte na prova objetiva. Nesta modalidade, este era o critério para sua prova discursiva ser levada em conta.
Foi então que ele percebeu que a FGV havia indeferido sua autodeclaração como pessoa negra. Ao perceber o engano, o professor contatou a fundação por e-mail. Pedia a correção de sua prova discursiva.
Eu expliquei para eles, mandei meu RG com a minha foto e aí eles falaram que não tinha como resolver porque eu tinha perdido o prazo
Como a FGV não atendeu o pedido do professor, ele decidiu processar a instituição. O UOL teve acesso aos autos do processo. André mandou no dia 7 de março de 2016 um envelope à FGV, segundo mostra comprovante de envio dos Correios. O pacote, diz ele, detalhava na embalagem seu conteúdo e continha apenas a autodeclaração disponibilizada pela própria instituição de que ele é negro. A remessa chegou no dia 11, cinco dias antes do prazo fixado no edital.
A FGV confirmou em juízo ter recebido a correspondência do professor, mas diz que ele se confundiu e enviou a autodeclaração junto com seus títulos acadêmicos. André diz que não tinha sequer títulos para incluir à época. Apesar de admitir o recebimento, a FGV afirmou ao UOL que o professor "não comprovou ter cumprido as regras do edital, não demonstrando o envio do documento para o endereço completo indicado no edital do concurso público". O edital, por sua vez, apontava que tanto autodeclaração como títulos acadêmicos deveriam ser encaminhados ao mesmo local.
Ainda em juízo, a FGV afirma que o indeferimento da autodeclaração de André foi publicado no Diário Oficial de São Paulo e no site da instituição antes da realização da prova. A partir de então, ele tinha dois dias úteis para recorrer da decisão.
O professor confirma que a informação estava disponível, mas que ele não checou porque acreditava que estivesse tudo certo, por ter enviado os documentos solicitados.
Caso tivesse agido com mais diligência, se atentando para a forma correta de envio dos documentos e acompanhado de forma periódica as publicações no sítio eletrônico da impetrada, fatalmente teria intervindo a tempo e de modo para garantir a correção de seu erro
FGV, em declaração na Justiça
Em resposta à reportagem, a Prefeitura de São Paulo, arrolada no processo, afirma que o indeferimento ocorreu porque "o interessado não enviou a autodeclaração exigida pelo Edital do Concurso no prazo previsto".
Candidato tem razão, diz MPF
O professor de história tem razão, de acordo com o MPF. Ele perdeu na primeira e segunda instâncias, mas recorreu ao STJ. Nesta etapa, a procuradoria foi chamada a se manifestar.
Em parecer assinado em 30 de agosto de 2019, portanto há um ano, o então subprocurador-geral da República, Moacir Guimarães Morais Filho, afirmou que o indeferimento da candidatura de André Luiz foi ilegal, já que ele enviou dentro do prazo o documento de autodeclaração e a Justiça de São Paulo deveria ter prestado atenção a esse fato quando analisou o caso.
Para o professor de Sociologia do IESP-UERJ (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Luiz Augusto Campos, a burocracia pode ser uma barreira para que as cotas funcionem na prática:
Não podemos fazer as normas burocráticas auxiliares virarem mecanismos de exclusão
Campos coordena o GEMAA (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa) e estuda políticas de cotas. Ele destaca que a lei brasileira não obriga que um professor apresente o diploma no ato da inscrição no concurso e possa entregá-lo na convocação para assumir o cargo.
Se tivesse entregado um diploma errado no momento da inscrição, ele ganharia em qualquer instância judicial o direito de apresentar o diploma [correto] no momento da convocação. Por que vai ser diferente com a declaração racial?
Luiz Augusto Campos, professor de Sociologia do IESP-UERJ
Desempregado na pandemia
Não fosse o erro da FGV e a longa disputa judicial, André já seria professor da rede pública paulistana. No decorrer do processo, a Justiça concedeu uma liminar para que a prova discursiva do professor fosse corrigida. A avaliação apontou que ele conseguiu nota suficiente para passar como cotista.
A FGV derrubou a decisão, que havia paralisado o concurso. Com a correção da prova, ele já estaria na sala de aula desde o ano passado. Engrossaria, assim, o pequeno grupo de professores que se autodeclaram negros (6% se dizem pretos e 12%, pardos). Esse contigente poderia ser maior, já que 46% não declaram cor, enquanto a maior parte, 35%, se diz branca. Devido ao processo judicial, porém, a lista de candidatos aprovados no concurso exibe seu nome acompanhado da sinalização "sob júdice".
Para o MPF, o candidato deveria ter uma "nova classificação nas listas geral e de cotas raciais feita após a análise da prova discursiva". A FGV disse que "respeita a manifestação do Ministério Público, mas as decisões judiciais proferidas nos autos são contrárias a tal parecer".
Desde que prestou concurso, André já trabalhou dando consultorias. Atualmente, no entanto, está desempregado por conta da pandemia do coronavírus. Ainda assim, descarta a hipótese de desistir da ação judicial em troca da vaga como professor.
Eu levarei [o processo] até o fim
A disputa judicial pode se prolongar ainda mais. Desde 12 de setembro de 2019, aguarde-se uma decisão do ministro Francisco Falcão, relator do caso. O STJ informou que não há data prevista para o julgamento.