Sob Bolsonaro, reconhecimento de quilombolas cai ao menor patamar da história
Sem certificação emitida pela Fundação Palmares, comunidades remanescentes de ex-escravizados ficam sem acesso a políticas públicas. O atual presidente da instituição, Sérgio Camargo, nega a existência do racismo.
No governo de Jair Bolsonaro (sem partido), o reconhecimento de comunidades quilombolas caiu ao menor patamar da história. No ano passado, foram emitidas 70 certificações, o número mais baixo desde 2004, quando foram estabelecidas as regras atuais de certificação.
Até 2019, a média foi de 180 documentações por ano. Em 2020, até fevereiro, foram apenas cinco, o que representa um ritmo ainda menor.
Sem essa declaração, os territórios que remontam ao período colonial e que serviram de refúgio para negros escravizados ficam fora de políticas públicas voltadas para quilombolas e tendem a se tornar alvo de conflitos.
Responsável pela emissão das certificações e pela defesa dos valores históricos e sociais dos negros, a Fundação Palmares é, desde novembro, comandada por Sérgio Camargo, que nega a existência de um racismo estrutural no Brasil.
Histórico do presidente
Quilombolas são alvos recorrentes de Bolsonaro. Há registros de declarações quando ele ainda era deputado federal, quando estava em pré-campanha presidencial e quando já eleito.
"Fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gasto com eles", disse Bolsonaro, em 2017. Ele chegou a ser processado por racismo devido à fala, mas foi absolvido.
A certificação de uma comunidade quilombola também é o primeiro passo de um longo processo para que o governo faça a demarcação de terras remanescentes de quilombos. Esse status oferece mais proteção a essa população em casos de disputa territorial com agricultores e empresários do ramo imobiliário.
Questionada sobre a queda no reconhecimento de comunidades descendentes de escravizados, a Fundação Palmares disse que houve corte de verba no ano passado, usada para visitas técnicas às comunidades. "O nosso quantitativo de servidores, desde gestões anteriores, é reduzido", complementou.
O órgão alegou ainda que houve menor quantidade de pedidos de certificação. Há, porém, cerca de 200 processos ainda na fila para serem concluídos.
A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) estima que existam entre 5 mil e 6 mil comunidades quilombolas no país. Até hoje, a Fundação Palmares registrou 3,4 mil comunidades remanescentes de quilombos.
Uma certificação pode reconhecer mais de uma comunidade. Em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, as 70 declarações emitidas englobaram 90 comunidades. Esse número também é o menor da série histórica e bem abaixo da média anual (220 comunidades).
Comunidades inibidas
Primeiro presidente da Fundação Palmares, o advogado Carlos Alves Moura afirma que, além dos entraves na atual gestão do órgão, as comunidades se sentem inibidas a solicitar a declaração desde que Bolsonaro assumiu o governo.
"Eu não esperava um tratamento normal [das questões quilombolas] após as declarações do presidente ainda na campanha. Mas eu não poderia imaginar que a coisa seria tão maldosa", comentou Moura, que comandou a Fundação de 1988, quando foi criada, a 1990 e, depois, de 2000 a 2003.
Um decreto de 2003 estabeleceu regras claras para que uma comunidade seja certificada pelo órgão. Por isso, as comparações sobre a atividade da Fundação Palmares são feitas a partir de 2004.
Essa declaração é o primeiro passo para que uma comunidade consiga todos os direitos previstos em lei para quilombos. Sem essa documentação, não é possível iniciar o processo de demarcação de terra quilombola, que agora é atribuição do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Além disso, a certificação é usada para ter acesso a políticas de saúde traçadas especificamente para essa parcela da população, políticas de produção agrícola e também para o segmento do Bolsa Família voltado a quilombolas.
"Mas se autodeclarar quilombola nesse governo é como se fosse um ato que coloca essas comunidades em exposição, e não um ato de proteção e garantia a direitos", avalia Maira Moreira, assessora jurídica da organização Terra de Direitos, que trabalha pela democratização do acesso à terra.
Ela lembra que o Brasil viveu três séculos e meio de escravidão e ainda carrega um racismo estrutural que oprime a população negra. Por isso, o governo, especialmente a Fundação Palmares, deveria atuar para reparar os danos e amparar os descendentes de escravos, diz.
Um negro que contesta o racismo
Em uma da série de declarações polêmicas, o atual presidente do órgão, o jornalista Sérgio Camargo, afirmou que a escravidão no Brasil foi "benéfica para os descendentes". Num áudio vazado, ele chamou o movimento negro de "escória maldita" e xingou Zumbi dos Palmares, líder quilombola que dá nome à Fundação.
Hoje, Camargo escreveu em sua conta no Twitter: "Acredito em duendes e no coelhinho da Páscoa, mas não acredito em 'racismo estrutural'. Nosso racismo é circunstancial!"
Em sua descrição na rede social, ele se define como "negro de direita, antivitimista, inimigo do politicamente correto, livre".
Bolsonaro escolheu Camargo para o cargo em novembro do ano passado. De início, a nomeação já gerou revolta no movimento negro por causa das postagens de Camargo nas redes sociais atacando a militância antirracista.
A Justiça chegou a suspender a decisão de Bolsonaro, mas, em fevereiro, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) encerrou a disputa judicial e liberou Camargo para exercer a função.
A Associação Nacional dos Professores Universitários de História (ANPUH) repudia as declarações do presidente da Fundação ao tentar desqualificar a luta contra o racismo e Zumbi dos Palmares, um dos principais representantes da resistência negra à escravidão na época colonial.
Em maio, Camargo usou os meios de comunicação da Fundação para enaltecer o ato da princesa Isabel de abolir a escravidão no Brasil, o último país a acabar com a prática, em 1888.
"O fato de ela ter assinado diz pouco sobre o contexto da época. Em 1870, quase 70% dessa população já estava em liberdade, já existia um movimento da população em prol da abolição. Dar à princesa o protagonismo da abolição é uma visão muito antiga. Ela foi pressionada a isso", afirmou a presidente da ANPUH, Márcia Maria Menendes Motta.
Os especialistas consultados pela DW Brasil avaliam que a nomeação de Camargo foi intencional: a escolha de um negro que contesta o racismo para o cargo que deveria cuidar da população negra tem o objetivo de embaralhar a discussão de ampliar os direitos dessa parcela da população, que vinha ganhando espaço nos últimos anos.
Procurada pela reportagem, a Fundação Palmares não se manifestou sobre o objetivo das declarações do presidente da instituição.